Autor do projeto de lei que deu origem ao Estatuto da Igualdade Racial, que completa 10 anos nesta segunda-feira, 20, o senador Paulo Paim (PT-RS) afirma que todos os Poderes devem ser provocados a apresentar medidas de combate ao racismo. “Se o Executivo não tem tido uma visão de apontar a política de combate ao racismo, que o mundo todo está fazendo, temos de fazer o possível para provocar o Legislativo e o Judiciário”, disse.
Deputado constituinte, Paim lembra que o estatuto começou a ser formulado em 1989, em uma viagem oficial à África do Sul. “Winnie Mandela (mulher de Nelson Mandela) nos entregou a carta de liberdade do povo sul-africano. A ideia de um estatuto surgiu daquela carta.” O texto, que seria aprovado em 2010, criou, entre outras coisas, a Secretaria de Política e Promoção da Igualdade Racial.
Segundo Paim, a proposta sofreu resistência inclusive de parte do movimento negro. “Reclamaram até que o relator do projeto, o senador Rodolfo Tourinho (PFL-BA), era branco. Na época eu respondia: “Só tem eu de negro aqui no Senado, de onde vou tirar outro?”. Leia a entrevista:
O que representou a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial?
O estatuto deu sinalização forte, trazendo à tona o debate do preconceito racial no Brasil.
Lembro que quando foi aprovado, em 2010, havia uma certa divergência no movimento negro, principalmente porque ele (o estatuto) não alcançava tudo o que gostaríamos.
Mas o texto reunia o que havia mais avançado em matéria de legislação e apontava para frente, inclusive questões atuais, como a política de cotas, fundo de combate ao racismo e ao preconceito.
Uma crítica às cotas é a ausência de critérios objetivos na concessão. Como melhorar isso?
Não existe lei perfeita. Estrutura nós temos. Temos o Judiciário para eventuais contestações, os ouvidores, o Ministério Público e a Defensoria. Agora, sabemos que tem desvio de conduta em todas as áreas, não só no Brasil. O que percebo é que, quando isso chega à política de cotas, é extrapolada a forma como é denunciado, como forma de atingir essa política pública, porque o número de efetivados corretamente é muito maior do que as burlas. Temos de reforçar a fiscalização pelos órgãos competentes.
Como o sr. vê o tratamento de questões raciais no governo Bolsonaro? Há algum avanço?
Não vejo isso partindo do governo. Como não há, temos que criar os instrumentos possíveis via Congresso e via Judiciário para que a gente avance. Não adianta só lamentar e lamentar, tem que propor e agir, aprovar e participar. Se o Executivo não tem tido uma visão de apontar a política de combate ao racismo, que o mundo todo está fazendo, nós temos de fazer o possível para provocar o Legislativo e o Judiciário. Uma discussão importante no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) é a destinação igualitária dos porcentuais do fundo eleitoral entre negros e brancos. Já me manifestei favoravelmente.
A população negra é a maior vítima de morte violenta no Brasil. Como mudar essa realidade?
Uma das maiores preocupações, no momento, é a violência policial. Um ditado terrível, incorporado ao imaginário popular, diz que “negro parado é suspeito, negro correndo é culpado”. Isso não pode existir. Sabemos como é diferente a forma como se aborda um negro e como se aborda alguém branco. Um projeto importantíssimo a ser discutido é o fim do auto de resistência, que ajudaria a reestruturar a polícia, reeducar o policial e ampliar o combate ao racismo e à violência.
O ‘Estadão’ mostrou que 70% dos jovens que não concluirão o ensino médio em razão da Covid são pretos ou pardos. Como reduzir o prejuízo desse grupo?
Essa crise (da pandemia) não será resolvida em um ou dois anos. E, se o governo não tiver um olhar para os vulneráveis, teremos anos muito difíceis. Vamos ter que investir para garantir que essa meninada não perca o ano: dar o mínimo de estrutura para estudar, mesmo que à distância, estrutura de alimentação, locomoção. Uma questão a avançar é a renda básica.
Na pandemia, protestos contra o racismo eclodiram nos EUA e no mundo após a morte de George Floyd. Como observa o racismo no cenário global e no Brasil?
O movimento nos EUA foi bonito porque mostrou pessoas negras e brancas caminhando lado a lado, exemplo em que a causa guiou o povo, no caso, a cultura da paz e o fim do preconceito. Infelizmente, racismo existe em todo lugar, mas o povo brasileiro nunca assumiu que foi o último País a abolir a escravatura. Aboliram, mas não deram nada ao negro. Era proibido até estudar, não deram emprego remunerado porque queriam trazer imigrantes. É por isso que dizemos que o racismo é estrutural. A criança não é racista, mas é induzida ao racismo por esse contexto. E, por ser estrutural, esse racismo é negado. É comum falarem: ‘Não, aqui não tem racismo’, mas você pega os dados e mostra que tem. Como se combate isso? Não é com violência. É com educação, investimento, emprego, renda e oportunidade.
E qual a sua opinião sobre Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares?
Foi uma indicação infeliz do governo. Temos no órgão que deveria combater o racismo e o preconceito um cidadão que é racista e é contra todas as formas de organização do povo negro. Infelizmente, o homem errado, no lugar errado e na hora errada. No momento em que o mundo se movimenta, a fundação, que lembra o herói negro Zumbi dos Palmares, não pode ser representada por alguém que nega à história de seu próprio povo. É muito triste!
Entrevista originalmente publicada no jornal O Estado de S. Paulo