Além do conceito de trabalho escravo, também está em jogo a comprovação de exploração direta do trabalho escravo pelo proprietário, trecho que precisa ser retirado do projeto de regulamentação da PEC, uma vez que, na maior parte dos casos, a exploração se dá por meio de terceiros, subordinados ao proprietário (prepostos, dirigentes ou administradores).
“Mesmo diante desta realidade degradante, a bancada ruralista segue tensionando os líderes partidários para que não se vote a emenda constitucional que permititá a expropriação de terras onde for constatada exploração de trabalhadores em condições análogas à de escravidão. Diante da eminência de sua aprovação e sanção pela Presidenta da República, querem torná-la inócua por meio de sua regulamentação. O Senado da República não pode ser omisso diante desta manobra”.
Leia a íntegra do artigo:
Os proprietários e seus escravos modernos – Por Rosi Gomes e Marcia Sprandel
A Proposta de Emenda a Constituição (PEC) nº 57-A, de 1999, de autoria do ex-senador Ademir Andrade (PSB/PA), tramitou no Congresso Nacional por 18 anos até ser aprovada, ano passado, pela Câmara dos Deputados. Seu texto original determina a expropriação de terras onde for constatada exploração de trabalhadores em condições análogas à de escravidão.
No Senado, a matéria foi aprovada sem alteração pela Comissão de Constituição e Justiça – CCJ. No entanto, em seu parecer, o senador relator Aloysio Nunes (PSDB/SP) propôs uma condicionante para aprovar a matéria. Antes da apreciação da PEC pelo Plenário da Casa, deveria ser votada sua regulamentação pela Comissão Mista destinada a regulamentar o texto constitucional. Uma anomalia regimental. Similar a colocar a carroça na frente dos bois. Como regulamentar uma PEC que não existe?
O que está por trás desta manobra é a discordância da Frente Parlamentar do Agronegócio, a chamada “bancada ruralista”, em aprovar a PEC do Trabalho Escravo. Em decorrência de sua pressão, a Comissão Regulamentadora aprovou com celeridade o PLS 432, de 2013 – que tem como relator o senador Romero Jucá (PMDB/RR) – antes da PEC ser votada pelo Plenário. No texto do PLS, os direitos fundamentais dos trabalhadores (garantidos na PEC) sofrem séria ameaça, principalmente no que diz respeito ao conceito de trabalho escravo.
O texto aprovado pela Comissão Mista de Regulamentação da Constituição, ao contrário do que estabelece o art. 149 do Código Penal, não contempla dois elementos presentes na escravidão contemporânea, que são a exposição dos trabalhadores a condições degradantes e a jornadas exaustivas, reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal como fundamentais para a execução do tipo penal. Da mesma forma, Ministério Público do Trabalho, ouvida a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, por consenso dos seus membros, editou as orientações números 3 e 4, sobre trabalho escravo, que compreende estes mesmos elementos.
Diante de possíveis retrocessos, o Governo Federal, pressionado pela Organização Internacional do Trabalho, pelas Nações Unidas e entidades do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, sugeriu aos parlamentares alterações para emendar o Projeto regulamentador. Não se pode abrir mão, por exemplo, das condições degradantes e da jornada exaustiva na conceituação de trabalho escravo. Além disso, é preciso retirar do texto do PLS a exigência de comprovação de exploração direta do trabalho escravo pelo proprietário, uma vez que, na maior parte dos casos, a exploração se dá por meio de terceiros, subordinados ao proprietário (prepostos, dirigentes ou administradores). Da mesma forma, o Governo sugere a exclusão de prévia condenação penal para que aconteça a expropriação, uma vez que tal exigência tornaria sem efeito o instituto previsto na PEC.
Não obstante os esforços dos auditores fiscais do trabalho, do MTE e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (responsáveis por manter e atualizar a ‘lista suja’ do trabalho escravo) do Ministério Público e da justiça do trabalho, a escravidão persiste em nosso país de várias formas. Seres humanos ainda são mantidos em situação análoga à de escravos, tanto do ponto de vista do cerceamento da liberdade quanto da supressão da sua dignidade. Estas pessoas, inclusive crianças, trabalham na agricultura, na construção civil, em fábricas, frigoríficos, minas, carvoarias, etc.
O Ministério Público do Trabalho e a OIT estimam que cerca de 40 mil brasileiros estão atualmente condenados a uma situação de escravidão “moderna”. Ou seja, a Lei Áurea parece não ter sido eficaz para acabar com certa mentalidade escravocrata que, infelizmente, ainda está presente em muitos dos proprietários de terra, que se consideram acima da legalidade. A chacina de Unaí é prova disso. Mesmo com todo o aparato de Estado, auditores fiscais do trabalho foram assassinados por flagrarem situação de trabalho escravo em fazendas daquela cidade mineira.
Mas não é só no campo que encontramos situações de trabalho escravo. Este também ocorre nas médias e grandes cidades brasileiras, envolvendo sobretudo trabalhadores trazidos do nordeste do país para a construção civil. Na região metropolitana de São Paulo, por outro lado, a fiscalização do trabalho do MTE tem encontrado imigrantes trabalhando em situação degradante e cumprindo jornada exaustiva, geralmente em oficinas de costura.
Mesmo diante desta realidade degradante, a bancada ruralista segue tensionando os líderes partidários para que não se vote a emenda constitucional que permititá a expropriação de terras onde for constatada exploração de trabalhadores em condições análogas à de escravidão. Diante da eminência de sua aprovação e sanção pela Presidenta da República, querem torná-la inócua por meio de sua regulamentação. O Senado da República não pode ser omisso diante desta manobra. É precisa votar imediatamente a PEC do Trabalho Escravo, alterando de uma vez por toda a Lei Maior do País.
Sua aprovação será um instrumento fundamental para a erradicação do trabalho escravo no Brasil, garantindo que, de uma vez por todas, os escravos modernos sejam libertos e tenham garantidos seus direitos trabalhistas e humanos.