A Constituição Brasileira assegura a todas as pessoas o direito de não serem consideradas culpadas até o trânsito em julgado — a conclusão definitiva — de um processo judicial. E isso só ocorre após serem esgotados todos os recursos, o último deles ao Supremo Tribunal Federal. Apesar dessa garantia constitucional — conhecida internacionalmente como princípio da presunção da inocência — o país parou, na última quarta-feira (22), na expectativa de que o STF decidisse se o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva poderia ser preso, ainda que seu processo se encontre na segunda instância, longe do trânsito em julgado.
A contradição entre o que está expresso na Constituição e a perspectiva de prisão de qualquer pessoa após uma decisão de segunda instância decorre principalmente da pressão que vem sendo realizada sobre o STF pelos órgãos responsáveis pela acusação, como o Ministério Público Federal e os investigadores encarregados da operação Lava Jato, explica o mestre em Direito Gabriel Sampaio, ex-secretário do Ministério da Justiça e atualmente assessor da bancada do PT no Senado.
Campanhas e pressão
“O MPF, por exemplo, tem feito campanhas, inclusive com as chamadas 10 medidas de combate à corrupção”, lembra Gabriel. Até 2009, o STF tinha a compreensão muito firme no sentido de aguardar o esgotamento de todos os recursos antes que se desse início à aplicação da pena. A Corte, porém, acabou revendo essa posição em 2016, por um placar apertado de 6×5, aceitando a ideia de prisão dos condenados em segunda instância.
A presunção da inocência é uma cláusula pétrea da Constituição Federal — um direito que não pode ser alterado nem mesmo por emenda constitucional. E embora o princípio não esteja sendo negado por qualquer dos atores envolvidos no atual debate, a controvérsia é sobre quando se esgota essa presunção. Segundo a legislação em vigor, isso se dá quando for esgotado o último recurso.
Mudança rechaçada
Quem poderia mudar a lei seria o Congresso Nacional, onde uma proposta de emenda à Constituição tentando antecipar o trânsito em julgado para o momento em que se encerrasse o julgamento em segunda instância não prosperou.
O texto até foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, mas profundamente alterado para garantir a permanência do direito a toda a sequência de recursos. A iniciativa das mudanças (surpresa!) foi de um tucano de alta plumagem, o hoje ministro das Relações Exteriores de Temer, Aloysio Nunes Ferreira.
“O Congresso entendeu que a mudança não era adequada para a nossa Carta Magna”, recapitula Gabriel. “E mesmo a aprovação da PEC seria polêmica, exatamente por se tratar de uma cláusula pétrea, que só pode ser alterada por uma nova Constituinte”.
O escrito e o interpretado
Mas, embora o STF não tenha o poder de alterar a legislação, a questão tem sido trazida à apreciação do tribunal. “Há uma corrente que pretende a interpretação da lei, a releitura da Constituição”. A Corte Suprema está claramente dividida em tono da questão.
Ministros como Celso de Melo, o decano, Marco Aurélio de Mello e Ricardo Lewandowski entendem que essa matéria não pode ser modificada por interpretação. Essa também é a opinião de diversos expoentes do universo jurídico. “Há no meio jurídico uma percepção de que a mudança da jurisprudência seria incorreta, pois viola o que diz a Constituição”, afirma Gabriel.
Garantias para todos
A tentativa de acochambrar o direito à presunção da inocência no molde de uma situação específica — a necessidade premente dos setores conservadores de interditarem a candidatura Lula por meio de sua prisão imediata — pode custar caro a todo e qualquer indivíduo que viva em território brasileiro. É que o encolhimento dessa garantia fundamental não atingirá apenas acusados de corrupção ou casos de grande repercussão.
“Se prevalecer a interpretação que quer a prisão após a segunda instância, isso vai valer para qualquer crime”, lembra Gabriel. Pode parecer uma “vitória sobre a impunidade”, mas essa é uma ilusão. A legislação brasileira já prevê a prisão preventiva para acusados que representem algum tipo de risco à sociedade. Esses casos respondem por 40% das pessoas presas atualmente no Brasil.
“O maior prejuízo da mudança será exatamente para as pessoas que respondem a seus processos em liberdade, pois seus comportamentos não trazem riscos à ordem pública, nem ao curso regular do processo”, pondera Gabriel. Em geral, o cidadão comum envolvido em uma excepcionalidade em sua trajetória de vida. Gente que, muitas vezes, acaba absolvida nas instâncias superiores.
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