A médica infectologista Luana Araújo desmontou, nesta quarta-feira (2), em depoimento à CPI da Covid todas as teses do negacionismo do governo Bolsonaro e seus apoiadores que já levaram o Brasil a perder mais de 465 mil vidas em meio à pandemia de Covid-19.
“Ciência não é opinião, é método”, afirmou, fazendo duras críticas ao que chamou de “neocurandeirismo” praticado pelo governo, principalmente no que tange à defesa do tratamento precoce e de medicamentos comprovadamente ineficazes no tratamento da Covid-19.
Ela foi convocada pela CPI após ser dispensada pelo governo dez dias depois de ter sua contratação anunciada pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, como secretária extraordinária de Enfrentamento à Covid-19. Segundo o ministro, ela não obteve a “validação técnica e a validação política” necessárias para assumir o cargo na pasta.
A médica já havia manifestado posições contrárias ao uso de medicamentos do tratamento precoce, defendido pelo governo Bolsonaro, classificando como “neocurandeirismo, iluminismo às avessas e o Brasil na vanguarda da estupidez mundial”.
“Todos nós somos a favor de uma terapia precoce que exista. Quando ela não existe, ela não pode se tornar uma política de saúde pública. Essa é uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente”, disse acerca da discussão em torno do tratamento precoce em discussão no Brasil. “Estamos na vanguarda da estupidez. É como se estivéssemos decidindo de que borda da Terra plana a gente vai pular”, completou.
O senador Renan Calheiros (MDB-AL) questionou se a saída de Luana do governo teria sido motivada por esses posicionamentos. Ela disse não saber exatamente qual foi o real motivo de sua saída do governo e que a questão deveria ser levada ao ministro da Saúde. “A minha posição absolutamente pública não é opinião. Na medicina a gente tem opinião até o momento em que substitui essa opinião por evidências. As evidências tiram da responsabilidade individual do profissional um juízo de valor sobre aquela situação. Não foi me dada nenhuma justificativa para minha saída”, explicou Luana, que atuou dez dias no governo sem ser nomeada.
O senador Humberto Costa (PT-PE) elogiou a postura da infectologista e a boa intenção dela em tentar colaborar de alguma forma com o atual governo no combate à pandemia, mas o depoimento dela, disse o senador, deixou claro que Bolsonaro não quer ao seu lado gestores técnicos que ajudem o Brasil a salvar vidas.
“A senhora fez uma opção bem-intencionada, mas que continha um engano. O de que seria possível, diante de um governo que tem uma política da morte, da fome e de impingir a política do sofrimento à população, poder fazer um trabalho como esse. Existe a boa e a má política. A política praticada pelo cidadão que está sentado no Palácio do Planalto é a pior política que pode existir, é a política da morte. E a senhora se enganou em achar que chegando lá poderia fazer a política da vida”, disse o senador.
O presidente da CPI, senador Omar Aziz (MDB-AM) também lamentou o fato de o governo ter perdido um quadro técnico com a capacidade da infectologista em meio à maior crise sanitária do século. “É impressionante. Não estão interessados [dentro do governo] em quem tem capacidade para gerenciar essa crise. Estão interessados em quem compactua, em quem acreditou, desde o primeiro momento, no tratamento precoce e na imunização de rebanho. Está provado que o ministro Queiroga não tem autonomia para nomear quem ele quisesse. Ele mentiu aqui para a gente”, disse.
O ex-ministro Marcelo Queiroga teve sua reconvocação aprovada pela CPI e deve depor novamente na próxima terça-feira (8).
Politização da pandemia inviabilizou montagem da equipe
Na tentativa de montagem de sua equipe técnica, Luana relatou que muitas “mentes brilhantes” de especialistas que trabalham no Brasil deixaram de trabalhar no Ministério da Saúde por conta da “polarização esdrúxula” da pandemia e da “politização incabível” do tema.
“Os maiores talentos que temos nessas áreas não estavam à disposição para trabalhar nessa secretaria, não queriam. Eu renunciei a muita coisa pela chance de ajudar o meu país. Os senhores acham que as pessoas, de fato, se sentem compelidas a aceitar esse desafio? Não se sentem”, disse.
Para ela, é necessário que o Brasil desenvolva soluções e estratégias claras adaptadas para a realidade da população local. Só assim o Brasil conseguirá reverter a atual situação de crise sanitária instalada. “Ao invés de fazer isso, estamos discutindo algo que é um ponto pacificado para o mundo inteiro [tratamento precoce]. Esse é o perigo da nossa fragilidade e da nossa arrogância. Não tem cabimento isso”, criticou.
Imunidade de rebanho só será alcançada com vacina
Perguntada se a campanha que Jair Bolsonaro fez em defesa do tratamento precoce prejudicou outras medidas de combate à pandemia como o distanciamento social e o uso de máscaras, a infectologista afirmou que o diversionismo de ideias prejudica a população por pulverizar as informações acerca das formas corretas de proteção e cuidado.
“Na hora em que você defende algo, independente do seu cargo, ou da sua posição social, que não tem comprovação científica, você expõe as pessoas do seu grupo a uma situação de extrema vulnerabilidade. Todo mundo que diz isso tem responsabilidade sobre o que acontece depois”, disse.
Logo em seguida, Luana afirmou que apenas a vacinação em massa será capaz de promover a chamada imunidade de rebanho, ou seja, quando uma porcentagem elevada da população adquire imunidade ao vírus.
“Uma imunidade de rebanho natural dentro da doença Covid-19 é impossível de ser atingida, não é uma estratégia inteligente. A gente consegue fazer isso com a vacinação por conseguir induzir uma resposta muito mais sólida do que a infecção natural e num período mais curto”, explicou.
Outro aspecto da imunização de rebanho por meio da vacinação em massa, explicou Luana, é a ausência de sofrimento das pessoas acometidas pela doença na sua forma mais aguda. “[Com a vacina] a gente consegue atingir a imunidade de rebanho na população sem sofrimento. Eu não posso imputar sofrimento e morte a população simplesmente pensando em atingir uma imunidade de rebanho. Não tem lógica”, completou.
Na avaliação do senador Rogério Carvalho (PT-SE), a estratégia adotada pelo governo Bolsonaro em meio à pandemia foi “macabra” ao incentivar a população a tomar medicamentos ineficazes contra a Covid-19 e se expor à doença sem saber os reais riscos que corria.
“A gente não pode expor a população a teste terapêutico aleatório. E isso foi o que fizeram em Manaus. E para essa teoria sobreviver precisar dar um alento para a população. A cloroquina serviu como um placebo da pandemia. Você dá para que as pessoas se exponham e adquiram a imunidade naturalmente. É uma coisa muito macabra essa estratégia”, disse.
Autonomia médica não é licença para experimentação
A infectologista rebateu um importante tese da base governista defensora do uso da cloroquina em pacientes da Covid-19: a autonomia médica para a utilização do medicamento nesses casos, mesmo que a cloroquina não tenha essa indicação.
Para ela, a autonomia médica deve existir baseada em alguns pilares elementares como a plausibilidade teórica e o volume de conhecimento teórico, e jamais deve representar qualquer tipo de “experimentação”. “Nós temos estudos que mostram o aumento da mortalidade após o uso da cloroquina. Quando a gente transforma isso numa decisão pessoal, é uma coisa. Quando transforma em política pública, é outra. Autonomia médica faz parte da nossa prática, mas não é licença para experimentação”, disse.
O senador Rogério Carvalho reforçou que, apesar disso, o médico ainda corre o risco de ser negligente, imprudente e imperito. E para ele, nos casos de utilização da cloroquina em pacientes de Covid-19, é flagrante a “imprudência” dos médicos.
O senador Jean Paul Prates (PT-RN) questionou os limites da autonomia médica e como devem ser tratadas as responsabilizações dos casos em que as pessoas foram levadas a acreditar que tomar medicamentos ineficazes a fariam ficar imunes à Covid-19, inclusive, com fins eleitorais.
“Agora conhecemos a autonomia médica e alguns falam como se fosse um cheque em branco. Como se o médico pudesse receitar qualquer coisa para qualquer doença, sem ser admoestado pela Jusitça, sem ser responsabilizado. Não se trata de criminalizar, mas é preciso discutir a criminalização de quem agiu de má-fé. Precisamos debater isso”, disse.
Em resposta, a infectologista destacou que o caminho não é criminalizar a profissão, mas, de fato, é preciso responsabilizar os atos médicos e a “responsabilização” desses atos são parte da existência da profissão médica. “Eu sou responsável pelo que eu prescrevo e pelo que eu digo ao meu paciente. Isso é muito claro. Eu não posso terceirizar isso. Eu preciso pesar os riscos e benefícios da prescrição e o que fazer no caso de o paciente evoluir de uma forma diferente. A autonomia médica me permite individualizar um tratamento. Eu preciso fazer um tratamento, mas meu paciente é alérgico, então eu posso fazer escolher uma segunda opção, entendendo o risco e o benefício. E a obrigação é repassar isso ao paciente. Porque a relação com o paciente é de parceria, não é uma parceria autocrática”, explicou.
Ameaças sofridas
Luana Araújo relatou aos senadores que mesmo antes de decidir assumir o cargo no governo recebeu diversas ameaças simplesmente por expor posições técnicas relacionas à pandemia.
“Eu, como diversos infectologistas, desde o começo da pandemia, sofri diversas ameaças. E isso é lamentável pela perda da oportunidade de crescimento do nosso povo. Saúde pública não existe sem o povo. Eu se sou gestora, eu posso dar as ordens. Mas se não tenho a parceria popular, elas não vão fazer. Eu recebi várias ameaças”, contou.