Dezessete anos depois da criação da Lei Maria da Penha e do avanço das políticas públicas de combate à violência contra a mulher, pesquisa do DataSenado revela que 75% das brasileiras afirmam conhecer pouco ou nada sobre a legislação. Esse foi um dos dados levantados durante audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH), nesta quinta-feira (7/3), para apresentação da 10ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, feita pelo Instituto DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV).
Elaborado a cada dois anos, o levantamento ouviu 21,7 mil mulheres com 16 anos ou mais em 2023 e integra uma série que tem o objetivo de ouvir cidadãs brasileiras sobre aspectos relacionados à desigualdade de gênero e agressões contra mulheres no país.
De acordo com a pesquisa, menos de um quarto das brasileiras (24%) afirma conhecer muito sobre a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). A análise ainda aponta que 30% das brasileiras já sofreram algum tipo de violência doméstica ou familiar provocada por homem.
Para o coordenador do Instituto DataSenado, Marcos Ruben de Oliveira, a pesquisa alerta que o índice pode ainda ser maior, já que em algumas situações não são prontamente percebidas pela mulher como violência, gerando uma subnotificação. Segundo ele, o levantamento apontou que o índice de subnotificação policial é “alarmante”, ao registrar que 61% das mulheres entrevistadas que sofreram violência não procuraram a delegacia para fazer a denúncia.
“É uma espécie de subnotificação. Às vezes, a mulher passa pela situação e sequer classifica essa situação como violência”, argumentou.
O dado que chamou mais a atenção da coordenadora-geral de Garantia de Direitos e Acesso à Justiça do Ministério das Mulheres, Sandra Bazzo, foi sobre o desconhecimento das mulheres em relação a legislação. Mesmo diante desse desconhecimento, ela observou que o ministério tem trabalhado para facilitar o acesso da população aos serviços como a Casa da Mulher Brasileira, ao Disque 180 (agora através do WhatsApp), ações preventivas de formação e educação, além da regulamentação do decreto que estabelece a contração mínima, no serviço público, de 8% de mulheres que sofrem violência.
“Trabalhamos muito no ministério nos eixos de prevenção primária, secundária e terciária, primária é tudo o que é possível para se evitar a violência, para que ela não aconteça. Então é a formação, são as ações que evitam e que promovem mudanças de atitudes e aí é a educação, é a disseminação da informação, é fazer com que essas informações sobre Maria da Penha, a própria pesquisa, cheguem a a população, que é destinatária”, explicou.
Para o presidente da CDH e autor do requerimento para realização da audiência (REQ 10/2024), senador Paulo Paim (PT-RS), o Brasil precisa urgentemente agir para dar um basta à “indiferença e à ignorância” que levam a perpetuação desse cenário de violência e feminicídio.
“A violência contra a mulher é um problema grave e persistente que afeta a segurança e o bem estar das mulheres em todas as esferas da sociedade. É urgente que haja um esforço contínuo para combater essa violência. Promover a igualdade de gênero e garantir que todas as mulheres possam viver livres. Livres de medo e violência”, disse o senador.
Estados
Essa foi a primeira vez, desde o início da série histórica que a pesquisa ampliou o tamanho da amostra para analisar os dados por estado e no Distrito Federal. Com isso, foi possível verificar que Rio de Janeiro, Rondônia e Amazonas são os estados com maiores índices de mulheres que declaram ter sofrido violência doméstica ou familiar provocada por homem, ficando acima da média nacional, como explicou Marcos de Oliveira.
“Nós podemos afirmar que de fato tem mais violência do que a média no Brasil. Nós vemos ali Amazônia, Rondônia e Rio de Janeiro com 38%, 37%, 36% de mulheres que sofreram violência doméstica e familiar por homem em algum momento da sua vida. Ali nós podemos afirmar que esses estados têm um percentual maior em relação ao Brasil. Se olharmos os outros estados, Rio Grande do Sul tem 27% apesar de ser menor que os 30%, mas considerando a margem de erro está ali na média do Brasil. O Piauí que está em 25%, que a estimativa pontual é menor do que a do Brasil, mas nós não temos condições de afirmar que estatisticamente essa diferença é real. A gente teria que fazer estudos mais aprofundados”, relatou.
Mulheres trans
Outra inovação do levantamento foi o esforço inicial para começar a conhecer a realidade das mulheres trans em relação a violência. A chefe do Serviço de Pesquisa e Análise do DataSenado, Isabela de Souza Lima Campos, esclareceu que nessa primeira rodada de abordagem a pesquisa é exploratória.
Foram entrevistadas 21 mulheres transgênero com distribuição aleatória nos estados. Dessas 21, nove declararam ter sofrido violência. Lima Campos destacou alguns depoimentos importantes compartilhados por esse grupo e disse que é preciso avançar ainda mais no aprimoramento dos métodos para obter maiores informações dessas pessoas. Ela apontou como desafio para se chegar a respostas a falta de conhecimento da população sobre a diversidade de gênero.
“A pesquisa é exploratória, ela não é quantitativa nem qualitativa. Mas ela serve como insumos para a gente melhorar o nosso trabalho e avançar. Uma das coisas que a gente percebe é que a identidade de gênero é ao mesmo tempo uma experiência interna por ser uma forma como o indivíduo se enxerga enquanto pessoa, mas também é coletiva por causa do referencial social”, disse.
A coordenadora-geral de promoção dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Dayana Brunetto, ressaltou a importância da junção de dados para se pensar em políticas públicas efetivas no combate à violência contra às mulheres.
Ela citou o dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) com dados referentes a 2023, que registram que pelo 15º ano o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais, com 145 mortes. Evidenciando a necessidade do poder público olhar com mais atenção para os direitos e proteções básicas dessas pessoas.
Brunetto também defendeu a adoção de ações educativas e um protocolo específico para ser implantado nas universidades. Para ela, faz-se necessário o estabelecimento de um protocolo que encaminhe a denúncia, para que haja punição e a vítima seja acolhida. Na sua visão, a formação com vistas a prevenção deve ser constante e não só entre aqueles que vão assumir a gestão das políticas públicas.
“A violência contra as mulheres não acontece só dentro de casa. A universidade não é uma ilha, o que acontece na sociedade acontece na universidade então a gente tem estupros, a gente tem importunação sexual, e aí a gente não tem um protocolo para proteger a vítima. O que a gente tem é: não podemos expulsar, a vítima tem que conviver com o agressor na mesma sala aula ou desistir da disciplina, ou trocar de curso, ou seja, ela é revitimizada sucessivas vezes”, enfatizou.
Percepção
Além das situações de agressão, a pesquisa ainda se debruçou sobre os dados referentes a percepção das mulheres em relação à violência. Conforme o DataSenado, é majoritária a percepção de que as mulheres que sofrem agressão se calam perante a violência. A maior parte das brasileiras (62%) acredita que essas mulheres denunciam na minoria das vezes o fato às autoridades. Parcela significativa, 22%, é ainda mais pessimista e acredita que elas simplesmente não denunciam.
Ainda de acordo com os dados, a faixa de renda impacta de maneira relevante a percepção sobre a não denúncia. Mais de um quarto das mulheres que possuem renda de até dois salários mínimos (28%) acreditam que as mulheres que sofrem violência doméstica e familiar não denunciam o fato às autoridades.
Na opinião de 73% das brasileiras, ter medo do agressor leva uma mulher a não denunciar a agressão na maioria das vezes. A falta de punição e a dependência financeira são outras situações que, para 61% das brasileiras, levam uma mulher a não denunciar a agressão na maioria das vezes. Por outro lado, a falta de conhecimento sobre seus direitos é apontada por menos da metade das cidadãs. Para 48% delas, não conhecer seus direitos leva uma mulher a não denunciar a agressão na maioria das vezes.