Mais veneno

Senado engrossa frente contra Pacote do Veneno

Projeto aprovado na Câmara dos Deputados começa a ser analisado no Senado. Enquanto bancada do agrotóxico pressiona para acelerar votação, senadores, artistas e organizações não governamentais fortalecem frente anti-veneno na sociedade, que tem bons motivos para se posicionar
Senado engrossa frente contra Pacote do Veneno

Na Região de Dourados (MS), indígenas da aldeia Guyraroká, no município de Caarapó, habituaram-se a uma cena surreal: são pulverizados por agrotóxicos pelos fazendeiros locais, cujos aviões fazem voos noturnos criminosos (pela lei, deveriam guardar distância de 500 metros de áreas habitadas) para afugentá-los e, assim, ocupar suas terras. Crianças e adultos hospitalizados, comida envenenada jogada fora, num cotidiano de “agressões químicas”, como classificou a Procuradoria do Ministério Público Federal, que está à frente do caso.

Mais ao norte, em Confresa (MT), não se veem mais abelhas. Elas são atraídas pela flor da soja e morrem em seguida, envenenadas. Os povos indígenas locais, da etnia Tapirapé, ficaram sem mel e, tal como as abelhas, adoeceram. Sentem dor de barriga e escamação na pele, mas nem mesmo podem lançar mão da medicina natural, porque as ervas também foram pulverizadas pelos fazendeiros.

No sul do Maranhão, famílias que vivem no Parque Estadual do Mirador são intoxicadas desde janeiro por agrotóxicos lançados no plantio de soja e milho e que chegam aos rios e riachos da região. Mais de 200 moradores de oito comunidades relatam coceira e queimaduras na pele, após consumir água contaminada.

São inúmeros exemplos, de norte a sul. Também na vizinha Argentina, que em 1996 dispensou análise científica num acordo com a gigante Monsanto para permitir o uso de sementes transgênicas e da substância glifosato na produção de soja. Duas décadas e 300 milhões de litros de agrotóxicos depois, os casos de câncer e de abortos espontâneos triplicaram no país. A experiência argentina rendeu um ensaio do fotógrafo Pablo Piovano que, por si, deveria ser suficiente para fazer o Congresso brasileiro repensar a política de agrotóxicos, em exame no Senado e prestes a piorar muito.

Prestes, mas ainda há tempo de se evitar, desde que se derrube o Pacote do Veneno, alcunha do projeto de lei (PL 6299/2002) aprovado na Câmara e que está para ser analisado pelos senadores. Para enfrentar o lobby dos agrotóxicos, personificado pela bancada ruralista e por um governo que já aprovou 1589 novos rótulos de veneno para as lavouras desde 2019, formou-se uma frente anti-veneno. São dezenas de organizações não governamentais e entidades ligadas à pesquisa, à academia, à cidadania e ao campo, que já contavam com a atuação da bancada do PT no Congresso e que agora ganham a companhia de artistas.

Com Caetano Veloso à frente, um grupo deve desembarcar no Senado no dia 9 de março para se reunir com o presidente Rodrigo Pacheco e alertá-lo dos riscos ao meio ambiente que representam alguns dos projetos em tramitação na Casa. Além do Pacote do Veneno, há as propostas que regularizam a grilagem de terras, e que também serão citadas pelos artistas na conversa. A cantora Anitta, pelo Twitter, anunciou uma manifestação: “Dia 9 de Março em Brasília ato #Caetanopelaterra às 15h em frente ao Congresso defendendo o meio ambiente”.

Para o líder da bancada do PT, senador Paulo Rocha (PA) o governo Bolsonaro está desmontando tudo que foi construído em termos de regras de controle e legislação ao longo do tempo. “A derrubada de regras é própria de governos negacionistas e autoritários. No caso específico dos agrotóxicos, ele não só ataca a saúde pública como também ataca a questão ambiental, na medida em que quer impedir que o assunto passe pelos órgãos controladores, como os da estrutura do Ministério da Saúde. Ele quer derrubar todos os controles que construímos nesse país. Nós somos contra e vamos construir todo um processo de mobilização e usar os instrumentos das regras regimentais para impedir que seja aprovado esse tipo de coisa aqui no Senado Federal”.

A falta de controle sobre a liberação de agrotóxicos foi apontada em manifesto recente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Os pesquisadores alertam que, se aprovado, o Pacote do Veneno vai concentrar no Ministério da Agricultura (Mapa) decisões que hoje passam pela pasta do Meio Ambiente e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para o senador Paulo Paim (PT-RS), essa transferência de prerrogativas é uma insanidade e uma afronta à saúde dos brasileiros:

“Vale lembrar que o atual governo, em três anos, fez uma farra na liberação: foram mil e quinhentos produtos. Se assim já é difícil, imaginem se esse pacote do veneno virar lei. Será o caos. Há estudos que mostram que, com a proliferação de agrotóxicos, há aumento de várias doenças. Os agricultores e as agricultoras sofrem diretamente. A população será atingida. Uma alimentação saudável é direito humano, é respeito à vida. Precisamos de ações governamentais e de um profundo planejamento que incentive a produção orgânica de alimentos, sem veneno no prato, tendo como base a agroecologia e a sustentabilidade”.

Uma pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) no ano passado dá razão a Paulo Paim: o que já é assustador pode ficar bem pior. Atualmente, os alimentos à mesa dos brasileiros já exibem vestígios de agrotóxicos. Os técnicos constataram resíduos até em bisnaguinhas, bolachas recheadas, biscoitos de água e sal, cereais, bebidas de soja e salgadinhos. Como adverte a Fiocruz, uma vez que “não existe uma técnica capaz de remover 100% dos resíduos”, o projeto em discussão pode expor a saúde da população a níveis alarmantes de veneno.

Na opinião da senadora Zenaide Maia (PROS-RN), “o potencial cancerígeno dos agrotóxicos e sua toxicidade para o meio ambiente deveriam ser motivos suficientes para qualquer um pisar no freio quando o assunto é liberação desses produtos. Mas, como já deu para notar, o governo federal não defende a vida dos brasileiros.” A senadora dá como exemplos o Ciclaniliprole e o Fenpropimorfe, “só para citar duas substâncias proibidas na União Europeia e que estão na lista de agrotóxicos recentemente liberados”. De fato, a história poderá contar que Bolsonaro foi o governo do veneno. Nada menos que um terço dos agrotóxicos utilizados no país foram autorizados no atual mandato. Em sintonia com Zenaide Maia, Rogério Carvalho (PT-SE) avalia que “o PL 6299/02 quer transformar o Brasil no maior lixão de veneno do mundo, autorizando produtos banidos em diversos países por prejudicarem a saúde ou o meio ambiente”.

Resistência

É preciso ampliar o debate sobre o projeto, até para que a população entenda o que está em jogo. Com esse objetivo, a bancada do PT irá pedir uma série de audiências públicas sobre a proposta ruralista. Além disso, é ponto pacífico que se trata de assunto a ser debatido por mais comissões da Casa. É o que explica o senador Fabiano Contarato (PT-ES). “Estamos atuando do sentido de garantir que o PL trâmite nas três comissões temáticas que têm competência para analisá-lo no Senado. Trabalhamos para mobilizar os senadores e sensibilizá-los sobre os prejuízos que essa matéria pode trazer à saúde e à segurança do trabalhador. É um projeto que, apresentado há 20 anos, já se mostrava inviável. Nesse momento, com os impactos já comprovados em relação ao uso de agrotóxicos para a população, torna-se ainda mais reprovável.”

Também será entregue aos demais senadores um dossiê que sintetiza estudos acadêmicos e, ainda, um comparativo do que se pretende utilizar nas lavouras brasileiras e o que é usado em outros países, inclusive na Europa. A ideia, aqui, é alertar sobre a redução do comércio exterior brasileiro em razão de possível boicote internacional. Rogério Carvalho resumiu o foco da bancada: “vamos trabalhar para que os órgãos de saúde e do meio ambiente continuem sendo escutados no processo de registro desses produtos.  É possível conciliar desenvolvimento agronômico, com a preservação da saúde e do meio ambiente. Não podemos ficar reféns de um agronegócio predatório e que prejudica a nossa economia, devemos estar alinhados com o que há de mais avançado no mundo nesse tema”.

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