O depoimento do ex-secretário de Saúde do estado do Amazonas, Marcellus Campêlo, prestado à CPI da Covid nesta terça-feira (15), deixou claro que o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello faltou com a verdade sobre o momento em que soube da crise de abastecimento de oxigênio para Manaus, no início do ano, e explicitou a preferência do governo Bolsonaro pelo tratamento precoce, tendo usado a capital amazonense como uma espécie de laboratório para comprovar a tese da imunidade de rebanho por contágio.
Sobre a crise em Manaus, Campêlo disse que fez a Pazuello um pedido por apoio logístico para levar cilindros de oxigênio a Manaus no dia 7 de janeiro. Outros ofícios, segundo ele, foram enviados tanto ao Ministério da Saúde, quanto ao ex-ministro nos dias 9, 11, 12 e 13 de janeiro com pedidos de apoio logístico.
Questionado se houve retorno sobre esses ofícios, Campêlo se resumiu a dizer: “Não houve resposta, que eu saiba”.
Em seu depoimento à CPI, Pazuello havia dito que teria sido informado pela empresa White Martins apenas no dia 10 de janeiro sobre a falta de oxigênio.
“É preciso registrar a mentira dita aqui por Eduardo Pazuello. Ele disse ao Ministério Público e ao STF que tinha recebido a informação no dia 7. E aqui disse que só teve conhecimento no dia 10. É mais uma reafirmação de que ele faltou com a verdade. Houve uma demora em promover esse socorro”, disse o senador Humberto Costa (PT-PE).
Enquanto faltava oxigênio, sobrava cloroquina
De acordo com o Marcellus Campêlo, a secretária do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, a “capitã cloroquina”, esteve nos primeiros dias do ano em Manaus a pedido de Pazuello. E ênfase de sua visita, segundo o ex-secretário, foi a propagação do tratamento precoce e a divulgação da plataforma TrateCov.
O TrateCov foi o aplicativo desenvolvido e lançado pelo governo Bolsonaro para promover o tratamento precoce e receitar, segundo uma calculadora, diferentes medicamentos ineficazes do chamado “kit covid”.
“Tivemos um governo que, enquanto Manaus estava pedindo oxigênio, mandou cloroquina para ser utilizada pela população. Fez um trabalho para convencer os médicos da atenção básica a fazerem a prescrição desse medicamento. Precisamos dar uma resposta à população. O povo brasileiro ficou horrorizado com o que aconteceu”, disse Humberto Costa.
O senador pediu especial atenção do relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), para outro ponto de contradição no depoimento de Mayra. Ela havia dito aos senadores que, juntamente com sua equipe enviada a Manaus, estavam diversos médicos, intensivistas e especialistas que teriam atuado na cidade.
Mas, de acordo com Marcellus, o Ministério apenas disponibilizou um banco de dados de cadastro de recursos humanos para agilizar contratações de profissionais, que nem sequer foram pagas pelo governo Bolsonaro. As despesas desse período, de acordo com o ex-secretário, foram pagas pelo governo estadual.
Pressão contra lockdown
Marcellus Campêlo foi questionado acerca dos articuladores das manifestações contrárias ao lockdown anunciado pelo governador do Amazonas, Wilson Lima, no final do ano passado. Após forte pressão de apoiadores do governo Bolsonaro, Lima recuou e desistiu das medidas que restringiriam as atividades comerciais por 15 dias, numa tentativa de achatar a curva de transmissão do vírus no estado. De acordo com Campêlo, foi percebida a aceleração do ritmo de casos desde setembro de 2020.
“Não tenho o nome das pessoas [que participaram das manifestações], mas eram comerciantes, pessoas que estavam querendo reabrir o comércio para ganhar dinheiro”, disse o ex-secretário. “As restrições [de circulação] ajudam a achatar a curva de contaminação e, consequentemente, a necessidade de internação e de óbitos. Era esse o pedido, para poder dar um tempo de conseguirmos organizar a rede [hospitalar] para a alta demanda que estava se efetuando”, explicou.
O senador Humberto Costa lembrou que, após o recuo do governo do Amazonas, diversos parlamentares bolsonaristas como Bia Kicis, Eduardo Bolsonaro e Osmar Terra, tido como idealizador do gabinete paralelo, comemoraram a desistência do governo local e a reabertura das atividades.
“Agora nós temos quase 500 mil pessoas que perderam a vida e ele [Osmar Terra] continua defendendo a mesma ideia [imunidade de rebanho por contágio] e fazendo a cabeça do presidente da República. Bolsonaro é diretamente responsável por essas mortes. É diretamente responsável por defender essas posições estapafúrdias”, disse o senador.
Na avaliação de Humberto, a cidade de Manaus foi um verdadeiro laboratório da tese da imunidade natural de rebanho e testes de eficácia de medicamentos do chamado kit covid que integram o tratamento precoce ineficaz.
“Acreditavam que a cloroquina, juntamente com esses outros medicamentos, seria capaz de promover um tratamento precoce, diminuir o número de pessoas acometidas e de mortes. E tenho a convicção de que, por essa razão, os esforços para garantir o mínimo necessário para o enfrentamento à pandemia em Manaus não foi feito. Isso se confirma, também, pelo empenho que o presidente e seus apoiadores tiveram para derrubar o decreto com as medidas protetivas que poderiam ter feito a diferença nesse período”, enfatizou Humberto.
Para o senador Rogério Carvalho (PT-SE), está mais do que provado que Jair Bolsonaro cometeu crime por abandonar a população brasileira à própria sorte ao adotar o tratamento precoce como única medida de controle sanitário durante a pandemia.
“Não existe problema com o tratamento precoce, desde que existam drogas capazes de combater a doença, impedir que a doença se manifeste de forma grave. Mas isso não existe. Mas o governo propôs o tratamento precoce em substituição a todas as medidas de controle sanitário. O grande crime está em defender uma medida de controle sanitário ineficaz, que largou os brasileiros à própria sorte, à morte”, disse Rogério.
Estudo teria matado 200 pessoas
O senador Humberto Costa também questionou Marcellus se a sua gestão teve alguma relação com um estudo realizado pelo grupo Samel, no Amazonas, utilizando a proxalutamida em pacientes com Covid-19.
Marcellus afirmou que soube do estudo apresentado pela empresa, mas disse que não tinha nenhuma relação com a Secretaria de Saúde.
O estudo foi autorizado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), mas existem suspeitas de que uma série de irregularidades tenham sido praticadas durante os ensaios clínicos. Os pesquisadores registraram o estudo como se fosse realizado em hospitais de Brasília, mas o fizeram em Manaus e outras cidades amazonenses.
Além disso, o protocolo previa testar a proxalutamida em menos de 300 pacientes com Covid moderada, mas os autores mudaram o rumo da pesquisa sem comunicar a Conep e aplicaram a droga em 615 pacientes graves. Quando submeteram os dados finais à Conep, em maio, informaram a ocorrência de mais de 200 óbitos.
“Esse estudo foi autorizado pelo Conep, mas depois foi eivado por uma série de irregularidades. É importante nós investigarmos”, alertou o senador Humberto Costa.
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