A Comissão de Direitos Humanos (CDH) realizou nesta quinta-feira (20) um amplo debate, que durou pouco mais de seis horas, acerca da possibilidade de ampliação do uso medicinal da Cannabis e do canabidiol no Brasil. Especialistas defenderam o avanço na legislação e cidadãos relataram os benefícios do uso da medicação com exemplos de crianças que tiveram suas vidas radicalmente melhoradas após o uso da substância em tratamentos médicos.
A audiência pública da CDH foi promovida pelo senador Paulo Paim (PT-RS), presidente do colegiado, e motivada pela proposição do PL 89/2023. O projeto, de Paim, institui a Política Nacional de Fornecimento Gratuito de Medicamentos Formulados de Derivado Vegetal à Base de Canabidiol, em associação com outras substâncias canabinoides, incluindo o tetrahidrocanabinol, nas unidades de saúde públicas e privadas conveniadas ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Para receber o medicamento ou a substância, o paciente deve estar cadastrado no SUS, não ter condições financeiras de comprá-lo e apresentar pedido médico, acompanhado de laudo com as razões da prescrição.
Pesquisa do DataSenado, de 2019, mostra que 87% dos entrevistados sabem que substâncias extraídas da Cannabis podem ser utilizadas em medicamentos para tratar doenças, 79% são favoráveis à sua distribuição pelo SUS e 75% concordam com a produção nacional por parte de indústrias farmacêuticas.
“Esse debate é de grande interesse para muitas pessoas em sofrimento extremo”, disse Maria Angela Aboin Gomes, representante da Associação Maesconha e da Federação das Associações de Cannabis Terapêutica do Brasil (FACT).
“Essa é uma medicina criminalizada [no Brasil]. A vanguarda terapêutica do uso da Cannabis acaba criminalizando famílias. O nosso sistema de leis ainda não entende a Cannabis como um fitoterápico, como que deveria ser. Mas a vida não espera. São crianças tendo o futuro mudado”, relatou.
Liane Maria Pereira, mãe da Caroline Pereira da Silva, deu um depoimento emocionante ao relatar a sua luta para conseguir plantar maconha em sua residência e produzir o próprio óleo para a filha, que sofria com a Síndrome de Dravet. Ela obteve em 2019, liberação judicial para o plantio de maconha.
“A ignorância leva ao preconceito”, destacou. “Eu tinha uma filha com o olhar perdido, que babava, que usava cadeira de rodas, sonda gástrica. Hoje, tenho uma adolescente que, por palavras do CFM, ao completar 18 anos, não poderá mais usar Cannabis”, disse.
Ela ainda relatou que a filha esteve, em 2014, próxima de realizar uma cirurgia para interromper as quase 50 crises convulsivas que ela tinha diariamente. Hoje, ela leva uma vida normal, com a doença sob controle apenas com o uso do óleo extraído da Cannabis.
A Resolução 2.324/22, do Conselho Federal de Medicina, autorizava o uso do canabidiol para o tratamento de epilepsias em crianças e adolescentes refratários aos tratamentos convencionais a terapias convencionais nas síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut, e no complexo da esclerose tuberosa. Após pressão de entidades, o CFM revogou a norma.
As famílias de pacientes que necessitam do uso desses medicamentos também lamentaram o preconceito existente contra eles. Isso, segundo os relatos, dificulta o avanço da legislação e, até mesmo, criminaliza quem faz o uso de tais substâncias, essenciais para o controle de doenças.
“Eu extraio [o óleo] com minhas duas mãos e não preciso pagar os 2,5 mil reais que custam o medicamento vendido nas farmácias. Como professora pública, eu não teria condições de comprar. Hoje, esse é o único medicamento que minha filha usa. Ao longo de dois anos, minha filha usava cinco convulsivos em dose máxima”, relatou.
Menos custo, mais saúde
A senadora Mara Gabrilli (PSD-SP), autora de um projeto (PDL 361/2022) que susta a resolução do CFM, afirmou que o Brasil tem imenso potencial para ingressar no grupo produtor de medicamentos de qualidade à base da Cannabis, gerar empregos e baratear o acesso para a população que necessita desse tipo de medicação.
Cerca de 50 países já garantem o acesso e o uso terapêutico da Cannabis. E destes, 20 países já regulamentaram o plantio, o cultivo, a produção e a distribuição de medicamentos à base da planta.
“Com a produção nacional, o custo dos medicamentos pode ser reduzido pela metade para o SUS. A gente não pode continuar sendo espectador do avanço da medicina. Temos que levar nosso país para o caminho do desenvolvimento e não para a rota da desinformação”, disse.
A senadora ainda rebateu o discurso de desinformação acerca do tema proferido pelo deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), ex-ministro de Bolsonaro, e que projetou que o Brasil não teria mais do que 800 mortes na pandemia de Covid-19. Ao tratar do tema, o deputado tentou fazer confusão entre o uso medicinal e o uso recreativo da Cannabis.
“Quando a gente for fazer o debate sobre o uso adulto e recreativo, será o momento para trazer essa explicação. Você está falando no fórum errado”, respondeu a senadora. “Não estamos falando do uso de drogas, estamos falando do uso de medicamentos. E chegar a dizer que o óleo é mais destrutivo do que drogas? As vezes temos que parar para pensar e refletir se estamos de acordo com a época que estamos vivendo e se estamos errados”, completou.
Consulta pública
O diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e representante do Ministério da Saúde, Alex Campos, relatou que o órgão abrirá, em breve, uma consulta pública para modernizar a regulamentação acerca do tema.
Ele relatou ainda que discussões sobre a manipulação, questões farmacêuticas e a via de utilização do medicamento estão em andamento. A partir disso, uma minuta deverá ser submetida a consulta pública para que a sociedade possa contribuir com o aprimoramento das normas sobre a utilização dos medicamentos à base da Cannabis.
“Conclamamos todos a participar. Nos ajudará a amadurecer essa espécie regulatória”, pontuou.