A Comissão de Direitos Humanos (CDH) promoveu audiência pública nesta quinta-feira (12/12) sobre políticas públicas que assegurem o direito à mobilidade segura como direito humano, especialmente para pessoas com deficiência. Especialistas e representantes de entidades que defendem segurança no trânsito alertaram para a importância da educação e da conscientização dos profissionais que trabalham na aplicação das normas a fim de conduzir uma abordagem “mais humanizada”. Eles também apontaram a velocidade nas vias como principal fator de risco à segurança viária, e pediram atualização do Código de Trânsito de 1997.
O senador Paulo Paim (PT-RS), presidente da comissão e autor do requerimento que motivou a audiência, disse que o debate reforçou o compromisso do Senado com políticas públicas que promovam, efetivamente, a segurança, a inclusão e o respeito.
“A liberdade de ir e vir com dignidade é um direito assegurado a toda população, mas que ainda enfrenta desafios importantes, significativos, em diversas regiões do país”, disse.
O senador destacou o projeto “PRF – Amiga dos Autistas”, da Polícia Rodoviária Federal, que traz um “olhar inclusivo e sensível” às necessidades específicas das pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), promovendo a sua proteção e bem-estar no contexto da mobilidade.
A superintendente da PRF-DF, Adriana Pivato, que coordena o projeto, explicou que a iniciativa busca promover a segurança viária com respeito e inclusão. Entre outras ações, o projeto atua na conscientização e qualificação de todos os policiais rodoviários federais com o objetivo de viabilizar abordagens seguras, humanizadas e de qualidade para todos que transitam nas rodovias.
“A PRF espera contribuir para a reversão de qualquer visão negativa sobre a nossa atuação nas rodovias federais. O nosso trabalho é incessante para a construção diária de uma sociedade verdadeiramente inclusiva, segura e acessível para todos. É imprescindível trabalharmos juntos para que todas as pessoas tenham assegurados os seus acessos às terapias, a escolas, a todo lugar que desejarem incluindo segurança pública, segurança viária, de mobilidade e de transporte”, afirmou.
Durante a audiência, ela entregou um à comissão o Protocolo de Intenções do Comitê Rede de Amigos dos Autistas, uma iniciativa da PRF-DF que reuniu representantes de órgãos e entidades engajados na inclusão e no acolhimento de pessoas com TEA.
Outro projeto apresentado na audiência é o “Polícia Judicial Amiga dos Autistas”, do Departamento Nacional de Polícia Judicial (DNPJ). O idealizador é Igor Mariano, diretor do DNPJ. Ele afirmou que existem “verdadeiras tragédias humanas” envolvendo a abordagem de forças de segurança pública a pessoas neurodivergentes, o que motivou a elaboração de um protocolo de interações para guiar a atuação desses profissionais.
O guia é focado no letramento, na conscientização, na identificação de estereotipias, na atenção às hipersensibilidades e na readequação do conforto sensorial, além do gerenciamento de crises.
“O policial treinado nesse protocolo fica mais flexível nas suas abordagens. As abordagens irrefletidas são as maiores causas de erros policiais. Na academia de polícia aprendemos a ver mão, linha de cintura, se alguém perto está tendo um comportamento suspeito. Já o policial treinado nesse protocolo se preocupa com a singularidade do indivíduo”, explicou.
O presidente da Comissão dos Direitos dos Autistas da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Fernando Cotta, reforçou a importância de levar para os órgãos de segurança todo conhecimento e conscientização sobre as pessoas com deficiência, principalmente em relação àquelas com TEA. Para ele, conduzir uma interação “respeitosa” e propagar informação é uma forma de promover o direito à uma mobilidade segura.
“Isso é coisa de polícia, sim. Essas pessoas passam pelas rodovias, vão aos tribunais. É importante o policial saber o que é um cordão de girassol, conhecer uma carteira de identificação da pessoa com [Transtorno do] Espectro Autista”, afirmou.
Ricardo Mendes Sutarelli, gerente de Saúde do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF), informou que, para promover mais justiça para as pessoas com autismo, o órgão substituiu a perícia presencial pela perícia documental, com a adoção da Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo (CIPTEA). Com essa medida, autistas e suas famílias não precisam se deslocar para ter acesso aos serviços do Detran e conseguem fazer tudo digitalmente. Além disso, o documento garante vaga prioritária em estacionamento.
No entanto, ele salientou que é preciso que toda a sociedade tenha “consciência” sobre esse direito e não crie mais barreiras.
“Se a comunidade não entender que aquela vaga não é dela, nem por um minuto, esses esforços acabarão sendo em vão”, destacou.
‘Trânsito que exclui’
O oficial de Segurança Viária da Organização Pan-Americana da Saúde Brasil, Victor Pavarino, observou que o trânsito violento “exclui seletivamente” as pessoas. Para ele, apesar de a discussão sobre transporte se concentrar nos temas de mobilidade, deslocamento e fluidez, ele é, fundamentalmente, “sobre acesso democrático”.
“Acessos do ponto de vista abstrato e físico: acesso a lugares, a serviços de saúde, a serviços de educação, de lazer. Acesso à vida. Quando falamos em exclusão, temos que trabalhar a questão da equidade. Quem acaba sendo excluído aqui são fundamentalmente os segmentos que estão física, social e economicamente vulneráveis. São pedestres, são ciclistas, são motociclistas, são os usuários do transporte público”, afirmou.
Velocidade
Flavio Soares de Freitas, gerente de Projetos na Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade), destacou a velocidade como um dos principais fatores de risco para a ocorrência de acidentes no trânsito. Segundo Freitas, a legislação brasileira é considerada avançada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), exceto para a gestão da velocidade. Por isso a associação defende que o país avance atualizando o Código de Trânsito no que se refere a esse ponto.
“[Temos que] permitir velocidades máximas de 50km por hora nas vias urbanas. Esse é o limite que os veículos suportam numa colisão lateral. Que os usos identificados das vias sirvam de parâmetro para a gente definir a velocidade máxima em torno de escolas, hospitais. A própria legislação já é definida dessa forma, mas é preciso que isso seja [tratado] de forma muito mais afirmativa”, disse.
Ele também defendeu, como mecanismo para promover o respeito consciente a redução da velocidade, o controle da velocidade por radar por trecho, que é a implantação de barreiras eletrônicas ao longo de curtas distâncias para verificar a velocidade média naquele percurso. Na avaliação de Freitas, esse tipo de ação é percebida pelo motorista como sendo um tipo de fiscalização “mais justa” e promove redução da taxa de mortalidade e dos acidentes.
Eduardo Bohn, representante da Fundação Thiago de Moraes Gonzaga, destacou que o Brasil não pode naturalizar as mortes por acidentes nas vias. A Fundação leva o nome de um jovem que morreu em 1996, aos 18 anos, quando o carro em que estava se chocou com um contêiner de lixo colocado irregularmente na rua.
Para Bohn, o Brasil vive uma “carnificina motorizada”. Segundo ele, um sistema que reforce o poder da educação como meio de promoção da cultura de segurança e de paz nas vias poderia evitar muitas mortes. Além disso, ele disse se preocupar com o compartilhamento de responsabilidades entre os atores envolvidos com o trânsito, desde aqueles que produzem as normas até o motorista e pedestre.
“Em que pese todos terem responsabilidade, não são as mesmas responsabilidade. Não têm o mesmo peso. Quem traz para as nossas vias mais risco tem que ter mais responsabilidade. Nós não podemos querer impor às vítimas de um sistema que não prioriza a sua segurança todo o custo da própria tragédia que esse sistema reproduz”, afirmou.
Impacto na saúde
Segundo dados do Ministério da Saúde, a taxa de mortalidade no Brasil por lesões no trânsito diminuiu entre 2012 e 2019, mas voltou a crescer de 2020 até 2023. Hoje, acidentes de trânsito causam cerca de 33 mil mortes por ano.
Letícia Cardoso, diretora do Departamento de Análise Epidemiológica e Vigilância das Doenças do Ministério da Saúde, afirmou que quem mais morre no trânsito no Brasil são os jovens, os mais pobres e as pessoas pretas. Diante disso, afirmou ela, é preciso prevenir essas ocorrência com estratégias de “intervenções integradas”, incluindo a regulamentação das novas formas de trabalho, como os aplicativos de entrega.
Segundo ela, o número de mortes em decorrência de acidente com motociclistas tem crescido no país, atingindo, sobretudo, homens jovens e de baixo poder aquisitivo, que se encontram em condições “degradantes” de trabalho.
“No ano passado, quando tivemos a pior epidemia de dengue no país, tivemos seis mil mortes, e houve toda uma mobilização social em torno da dengue. Perdemos 33 mil pessoas, todos os anos, no trânsito. Por que não conseguimos mobilizar a sociedade para prestar atenção nessas mortes que são evitáveis?”, questionou.
Ela ainda alertou que as ocorrências de trânsito têm impacto de R$ 300 milhões por ano sobre a saúde pública, para bancar custos de internação e reabilitação das pessoas envolvidas em acidentes. Além disso há a ocupação de leitos, que deixam de ficar disponíveis para o restante da população.