Grandes problemas brasileiros são também grandes oportunidades

Em Entrevista ao Valor, o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, nega que economia brasileira passe por um problema estrutural.


Segundo ele, o Brasil oferece grandes
oportunidades de investimento rentável,
capazes de mobilizar capital porque
existem fronteiras de crescimento a
serem exploradas


O presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luciano Coutinho, numa extensa entrevista concedida ao Valor Econômico e publicada hoje, afirma que não é verdadeiro dizer que a economia brasileira passa por um problema estrutural. Segundo ele, se o governo não tivesse atuado para reduzir os juros, a taxa de câmbio, desonerado o IPI e a folha de pagamento, e se não tivesse motivado uma atuação mais firme dos bancos públicos, muito provavelmente o quadro teria sido pior entre 2011 e 2012. Para o presidente do BNDES, o Brasil oferece grandes oportunidades de investimento rentável, capazes de mobilizar capital porque existem fronteiras de crescimento a serem exploradas, seja na área de infraestrutura logística (rodovias, portos, aeroportos, ferrovia), seja em investimentos em habitação ou em energia renovável.

Leia a íntegra da entrevista de Luciano Coutinho:

“É viável revitalizar a indústria”, diz Coutinho

Por Denise Neumann e Cristiano Romero | De São Paulo

A quase estagnação da economia brasileira e os sinais de que a indústria local definha são processos conjunturais. Ambos têm jeito, na avaliação de Luciano Coutinho, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O crescimento, diz, já está a caminho e será reforçado, nos próximos anos, por uma extensa “fronteira de oportunidades”, que vai da infraestrutura à saúde, entre outras áreas.

Revitalizar a indústria, contudo, é parte fundamental dessa estratégia, reconhece Coutinho. Integrante ativo das políticas industriais formuladas nos últimos anos, ele insiste que a nova agenda mantenha políticas da “velha” agenda, como conteúdo local e uso do poder de compra do Estado, como fazem outros governos, como o alemão. Ao mesmo tempo, defende que ela cada vez mais mire a inovação e incorpore um novo paradigma: para dar certo, é preciso ser competitiva a ponto de competir internacionalmente. Confira no texto abaixo a íntegra da entrevista concedida ao Valor PRO pelo presidente do BNDES, Luciano Coutinho:

Valor: O governo adotou uma série de estímulos monetários e fiscais e a economia não reagiu. Por quê?

Luciano Coutinho: Talvez, a economia já tenha reagido e isso vai ficar claro no fim do mês, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgar os dados. Todos os indicativos são de que houve um crescimento expressivo no primeiro trimestre. Eu gostaria de mencionar uma série de processos que caracterizaram parte de 2011 e de 2012 e que a diferenciam da resposta rápida da economia em 2009 e 2010, quando houve uma recuperação em forma de V.

Valor: E agora?

Coutinho: Agora, estamos tendo uma recuperação em U, muito mais lenta. A crise na zona do euro foi em “câmera lenta”, com a repetição de vários episódios críticos que mantiveram uma incerteza muito densa por pouco mais de um ano. Mesmo depois que o Mario Draghi [presidente do Banco Central Europeu] deu a famosa declaração — “Farei tudo o que for possível para garantir os sistemas bancários porque cai dentro dos mandatos de um banco central” —, tivemos o episódio do Chipre.

Valor: Isso afeta o Brasil pelo canal da confiança?

Coutinho: Afeta o canal de expectativas e o de cautela. Outro fato é que a desaceleração de 2011 começou como um ato deliberado da política macroeconômica. Foram usados instrumentos macroprudenciais e uma subida inicial de juros para controlar a inflação. Sobrepôs-se a isso a crise externa. Além disso, 2011 e 2012 foram marcados por um lento processo de ajuste de estoques na indústria. E foi um processo, em certo sentido, autoalimentado.

Valor: Por quê?

Coutinho: Como a economia crescia pouco, a produção também crescia pouco. Houve um processo lento de ajuste de estoques, problematizado também pelo acirramento da concorrência internacional, com a retração do comércio em 2011 e crescimento muito medíocre em 2012. No caso brasileiro, áreas importantes de exportação industrial ficaram bloqueadas ou submetidas à forte concorrência. O canal exportação nos foi, em boa medida, obstado. Acresço a esse processo um terceiro elemento.

Valor: Qual?

Coutinho: O forte crescimento ocorrido entre 2004 e 2010, com breve interrupção em 2009, alavancou muito o consumo e o endividamento das famílias, além do endividamento das pequenas empresas. Esse processo em 2011 e 2012 se revestiu, diferentemente de 2009, da necessidade de desalavancagem do endividamento das famílias e das pequenas empresas, o que também travou uma das molas importantes da recuperação. Em que pese o esforço dos bancos públicos, a taxa de concessão do crédito com recursos livres desacelerou em 2011 e 2012. Só agora esse processo de desalavancagem está sendo concluído.

Valor: Quais são os indícios disso?

Coutinho: Os índices de inadimplência começaram a ceder, mas demoraram muito. Mas esses processos são longos. E, finalmente, tivemos um ano ruim para a agricultura em 2012. A questão relevante é: se o governo não tivesse atuado intensamente no sentido de reduzir taxa de juros, melhorar a posição relativa da taxa de câmbio em termos de competitividade, desonerar IPI e depois folha de pagamento, e se não tivesse motivado uma atuação mais forte dos bancos públicos, é muito provável que o quadro tivesse sido muito pior. Há, portanto, uma configuração conjuntural nesse período de 2011 e 2012 que está sendo extrapolada como se fora estrutural, como se tivéssemos uma perda de vitalidade da economia brasileira. O que em economês chamam de redução do PIB potencial, o que não é verdadeiro.

Valor: Por que não é estrutural?

Coutinho: Não é estrutural porque os grandes problemas brasileiros são também grandes oportunidades. O Brasil é um país de grandes oportunidades de investimento rentável, capazes de mobilizar capital e fazer subir a taxa agregada de formação de capital sobre o PIB, alargando o próprio crescimento potencial. É uma reflexão puramente estática tomar o passado recente como imutável. É ignorar a capacidade construtiva, tanto do governo quanto do setor privado. Quero dar exemplos de fronteiras de crescimento que o Brasil tem. Primeiro, as imensas oportunidades na área de infraestrutura logística, que constitui o cerne do programa de investimento lançado pela presidenta no ano passado, que está em processo de amadurecimento e que representará uma grande oportunidade de investimento em rodovias, portos, aeroportos, ferrovias, com duplo efeito, de ativar a construção pesada, de um lado, gerando empregos; e, de outro lado, de infundir eficiência crescente no funcionamento da economia. Há efeitos sistêmicos para o aumento da competitividade e redução de custos. Então, é uma fronteira relevante de investimentos. Outra fronteira muito relevante, essa já instalada e clássica, é a energia. O Brasil tem um potencial de energias a ser explorado, tanto de hidrelétricas quanto de renováveis e de outras, tem necessidade, e tem um modelo que funciona.

Valor: Esse modelo está funcionando?

Coutinho: O de energia? Perfeitamente. E o interesse nos leilões é ascendente, e não há razão para que não seja, e também é ascendente a curva de investimento em energia. Terceiro, temos uma grande fronteira na área de óleo e gás, onde eu enxergo a abertura das novas rodadas como uma grande oportunidade de acelerar os investimentos no setor e, se tivermos a capacidade de desenvolver a cadeia supridora, tanto melhor. Temos, ainda, a fronteira da construção. A construção residencial tem ainda um grande potencial. É preciso terminar o ciclo de desalavancagem familiar, mas há ainda um déficit de habitação. A combinação de instrumentos de habitação social – Minha Casa, Minha Vida – com instrumentos de créditos de longo prazo para o avanço da habitação residencial é outra avenida importante, e ela tem um efeito de empuxe sobre uma ampla cadeia de materiais, insumos, etc. Também devo mencionar os agronegócios competitivos, que têm uma perspectiva na medida que a Ásia, com seus processos de urbanização, é fonte de demanda e uma grande oportunidade.

Valor: Nem para a indústria houve uma perda estrutural de espaço na economia?

Coutinho: Se eu olhar a composição setorial do crescimento, verei que, nesse período, a indústria ficou patinando e até recuou um pouco. Dos grandes setores, foi o que mais sofreu. Como a indústria é proporcionalmente quem investe mais, o seu desempenho fraco afetou também a formação de capital. O desempenho da indústria foi afetado, além dos fatores de demanda que mencionei, pela deterioração das condições de competitividade, dada por pressões de custo. É um fenômeno que vinha acontecendo nos últimos anos, mas se acelerou em 2011 e 2012.

Valor: Que custos aumentaram?

Coutinho: Os custos salariais e de certos insumos importantes. Várias cadeias reclamam disso. Queria lembrar que o governo atuou. A desoneração de folha em parte visou aliviar pressão de custos sobre os salários. A redução da tarifa de energia foi em grande medida motivada para aliviar os custos de produção da indústria. A melhora relativa da taxa de câmbio também foi justificada publicamente pelo governo como um movimento em direção a melhorar a competitividade da indústria. Temos que olhar as oportunidades que o Brasil tem de desenvolvimento industrial. É importante mencionar iniciativas como o plano Brasil Maior e iniciativas como o Inovar-Auto. O governo sinalizou claramente que a indústria é estratégica a longo prazo para o Brasil. Vejo que uma reflexão de como revitalizar a indústria é algo que está na ordem do dia. Tenho uma visão de que é, sim, possível revitalizar a indústria brasileira, ampliar um pouco o seu espaço na formação da renda nacional e voltar a ter uma política de competitividade e de exportação para a indústria.

Valor: De que indústria o senhor está falando? De toda a indústria? Ou talvez o Brasil tenha que olhar para a frente e lidar com o fato de que alguns setores vão desaparecer por causa da concorrência externa?

Coutinho: Como dizia Lavoisier, na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Antes de decretar a morte de um determinado setor ou cadeia industrial, é preciso compreender qual é a transformação competitiva possível; quais são os nichos e oportunidades que precisam ser estudados como forma de evoluir e gerar uma alternativa de sobrevivência competitiva. É evidente que qualquer política precisa olhar o que está acontecendo na divisão mundial de trabalho, a organização de cadeias, quem são os concorrentes e a viabilidade de sustentar uma capacidade de competir no quadro internacional.

Valor: O senhor diz que a capacidade de competir no quadro internacional é um critério, mas boa parte das medidas que o governo vem adotando são no sentido de proteger a indústria e dar sobrepreço para ela competir com o importado. Além disso, o governo vem exigindo conteúdo nacional. Isso não é conflituoso?

Coutinho: Não. Discordo de que a política seja protecionista no sentido clássico. É uma política que tem incentivos à transformação e à inovação. Em segundo lugar, é falsa a tese de que a política industrial trabalha com critérios de conteúdo local desarrazoados e ineficientes. Na verdade, já houve em várias cadeias importantes um processo de esvaziamento por dentro, o conteúdo local já diminuiu de forma significativa, principalmente nas cadeias muito longas.

Valor: O senhor pode citar um exemplo?

Coutinho: Na cadeia da indústria automotiva. Outro é a da cadeia eletroeletrônica, onde o esvaziamento é até anterior. Quem se recuperar dentro de critérios de competitividade e custo e com mais agregação de valor e adensamento de cadeias no país terá uma política válida. Ela não será factível se quiserem impor artificialmente às empresas normas incompatíveis com a concorrência internacional porque as empresas não farão, especialmente as que estão integradas em cadeias internacionais. Se você olha as pontuações e os incentivos que estão embutidos no Inovar-Auto…

Valor: Mas esse programa tem (exigência de) conteúdo local.

Coutinho: Tem, mas ele é relativamente baixo. Os níveis de conteúdo local históricos da indústria automobilística eram 90%. Hoje, estamos falando de níveis de 60%. Portanto, há uma grande margem dentro da política para acomodação de segmentos onde a especialização internacional já consolidou a necessidade de importar e combinar importação com a produção local. Quem tem feito a crítica a um certo exagero da política de conteúdo local são economistas que não conhecem a indústria e que deveriam se informar primeiro antes de emitir opiniões taxativas a respeito.

Valor: O economista Edmar Bacha propõe o que chama de “Plano Real para a indústria”: uma combinação de forte redução da carga tributária com eliminação de tarifas de importação, redução da exigência de conteúdo nacional e flutuação do câmbio. Como o senhor vê isso?

Coutinho: A preocupação com a reindustrialização é muito positiva. Porém as políticas industriais são muito mais complexas. Não se resumem simplesmente a assegurar um câmbio competitivo, o que seria bom. Mas assegurar uma posição cambial competitiva duradoura e induzir processos de transição para o desenvolvimento no país de novas oportunidades industriais que intensifiquem processos de inovação, que capturem para a produção do país essas novas oportunidades e deem uma chance a determinadas cadeias de recuperarem capacidade de competir e de se adensarem, requer agendas bastante complexas, que vão além de uma simples combinação de tarifas com um câmbio competitivo. No mundo inteiro, existe um conjunto de instrumentos que tem sido exercitado de forma cada vez mais intensa.

Valor: De que forma?

Coutinho: Começa com fortes incentivos à inovação tecnológica, à disseminação de novas técnicas de automação e de produção, à qualificação e ao desenvolvimento de recursos humanos e de engenharia e à capacidade de aprendizado em muitos setores caracterizados pelas chamadas economias dinâmicas de escala. Isto significa o seguinte: é preciso começar a fazer e a repetir processos para alcançar padrões de competitividade. Além disso, há outros instrumentos usados de maneira muito intensa em várias economias.

Valor: Quais?

Coutinho: O uso do poder de compra público, especialmente em complexos ligados à defesa, a novas energias renováveis, a todo o complexo de saúde. A realidade nas economias desenvolvidas e em desenvolvimento hoje é de uma mobilização de instrumentos sofisticados de fomento ao desenvolvimento industrial. A tese de que o Brasil precisa revitalizar (a indústria) ou se reindustrializar, ou desenvolver novas especializações é altamente meritória e eu quero saudar esse debate, que se aperfeiçoe. Desonerar de impostos a indústria é algo positivo, pois a indústria é a maior pagadora de tributos. Ela é mais formalizada que outros setores e proporcionalmente paga mais que outros. Essa desoneração tributária da indústria poderia ser pensada imediatamente. Não precisaria esperar uma queda geral de todos os setores porque a indústria já paga mais. Em um redesenho da estrutura tributária brasileira, é válida a tese de que, dado o valor estratégico da indústria, ela não deveria ser tão penalizada quanto é hoje.

Valor: Isso será suficiente?

Coutinho: Não. É necessária uma estratégia. Se observarmos o que está ocorrendo no mundo, veremos estratégias muito bem afinadas.

Valor: Onde?

Coutinho: A Alemanha tem estratégia. Os Estados Unidos não investem mais pesadamente porque os republicanos não deixam, mas eles têm estratégia. O Japão está retomando, desvalorizando o câmbio e tentando revitalizar a indústria.

Valor: Por que no Brasil há uma dificuldade de se defender uma estratégia para a indústria?

Coutinho: Não vejo tanta dificuldade. Vejo alguns poucos radicais defendendo a desindustrialização e a especialização em produtos primários e commodities. À medida que haja compreensão da importância da indústria, de que um sistema industrial razoavelmente sofisticado e diversificado é importante para a geração de empregos de alta qualidade e em serviços, inclusive, porque há os empregos pré e pós-manufatura dentro das cadeias, não vejo esse como um debate tão difícil. Mas, claro, existe ainda um pouco de desinformação de como são de fato complexas as estratégias de desenvolvimento industrial.

Valor: O governo Lula adotou duas políticas industriais; o governo Dilma fez duas fases do Brasil Maior. Se olharmos de 2004 para cá, a participação da indústria na economia caiu de 19% para 13% do PIB. O  que deu errado?

Coutinho: Não houve uma descontinuidade das políticas. A primeira foi focada em setores intensivos em tecnologia. Isso foi mantido e se ampliou com a Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDP). O Brasil Maior é um passo adiante a partir da PDP, não é uma negação. Até o advento da crise internacional, em 2008, o crescimento da indústria era satisfatório bem como o aumento do investimento industrial. Embora algumas tensões competitivas já se manifestassem sobre a indústria brasileira. Acredito que os problemas começam a se tornar graves à medida que vem a segunda etapa da crise internacional.

Valor: Por quê?

Coutinho: Por causa de um acirramento da concorrência internacional. Segundo, por causa de ciclos de apreciação do câmbio, finalmente revertidos em parte a partir de 2011 e 2012. Até 2010, foi possível não explicitar tanto as dificuldades. Elas se tornaram explícitas pelo conjunto de tensões sobre custos, perda de competitividade, a partir de 2011 e 2012, e ainda constituem desafios de primeira grandeza.

Valor: Nesse período, o BNDES adotou a política de “campeões nacionais”. Essa política foi encerrada?

Coutinho: O potencial de desenvolver empresas com projeção internacional, e não falo só de empresas que exportam, mas que tenham bases operacionais, isso tem um valor grande. O investimento direto traz mais comércio, tem bases operacionais, consegue agregar mais valor porque se transforma em uma empresa de escopo internacional. No caso do Brasil, isso estava limitado, de alguma maneira, aos setores onde o país desenvolveu uma forte capacidade competitiva. Como seria impossível e insensato querer fabricar artificialmente empresas com projeção internacional, nós, e o mercado também e isso é importante lembrar, impulsionamos o desenvolvimento de companhias em que essas pré-condições existiam. Em larga medida, essa oportunidades foram endereçadas.

Valor: Mas a política acabou?

Coutinho: Se ainda existirem coisas pelo mérito de que o país desenvolva empresas de expressão internacional, elas podem ser examinadas. Quase todas essas operações foram feitas junto com o mercado de capitais. Em alguns casos, foram soluções a partir da crise, em que algumas empresas se machucaram em 2008, eram exportadoras e a solução caminhou naturalmente para consolidações que terminaram por aumentar a capacidade e a presença internacional dessas empresas. Todos os países que se desenvolveram historicamente projetaram, a partir de sua estrutura empresarial, grandes empresas internacionais.

Valor: Que exemplos o senhor dá?

Coutinho: O grande ciclo de internacionalização das empresas americanas começa nos anos 20, é interrompido pela Grande Depressão e ganha um tremendo impulso nos anos 50, no pós-Guerra. Nos anos 60, é a vez de as grandes empresas europeias se internacionalizarem depois do período de recuperação econômica do pós-Guerra. Veio a resposta deliberada dos estados de projetar empresas dentro da Europa e transformá-las em empresas de expressão internacional. Se olharmos os anos 70, é o momento em que a economia japonesa desenvolve grandes empresas internacionais, novas marcas e novas especializações, com grande mérito porque o Japão começa a disputar segmentos altamente intensivos em inovação tecnológica e desenvolve marcas internacionais. Nos anos 80, começam a aparecer empresas coreanas.

Na primeira década deste século, aparecem as chinesas em diversos segmentos. Há também um movimento de internacionalização de empresas da Índia. Se olharmos o Brasil, foi até tardio esse movimento. Não há nada de extraordinário nisso. É apenas uma expressão da importância da estrutura empresarial brasileira, em movimentos coetâneos com o capitalismo moderno. Infelizmente, dados os problemas estruturais da indústria manufatureira brasileira, que vêm desde os anos 90, o Brasil não pôde ainda desenvolver capacidade e empresas competitivas em alto valor agregado na manufatura, embora tenha uma ou outra, mas ainda não estamos no topo do pódio, ainda estamos ali em empresas que estão entre décima/vigésima. Uma exceção é a Embraer, que é um caso à parte e exemplar de desenvolvimento de política industrial, com poder de compra, desenvolvimento. Mas eu estou pensando na indústria manufatureira em geral.

Valor: Mas o senhor vê setores da indústria manufatureira onde o país ainda possa ganhar liderança mundial? Quais?

Coutinho: Eu acredito que se trabalharmos em uma agenda de revitalização da indústria brasileira, uma agenda moderna que reconhece e parte da premissa de que a competitividade internacional é pré-condição para a própria formulação da politica é quase natural que se desenvolvam candidatos a se transformarem em empresas de expressão internacional.

Valor: O que é essa agenda moderna? O que tem nela que ainda não apareceu nas políticas dos últimos anos?

Coutinho: Primeiro, o desenvolvimento no país de todos os complexos industriais intensivos em inovação e em conhecimento. O Brasil é uma das poucas economias emergentes que não desenvolveu um complexo de tecnologia minimamente competente em tecnologia da informação com capacidade de produção, salvo poucas exceções. Não temos, dado o tamanho da nossa estrutura industrial, empresas importantes nos diversos segmentos de tecnologia de informação, como equipamentos de comunicação, de consumo, de informática, de automação. Não que não tenhamos uma ou outra empresa, até com potencial. Tivemos avanços e retrocessos e não conseguimos estruturar. Tivemos algum avanço na indústria de medicamentos e equipamentos ligados ao complexo da saúde, especialmente com a política de genéricos, que permitiu o desenvolvimento de empresas brasileiras razoavelmente líquidas e rentáveis, mas elas estão ainda em processo de dar um salto de qualidade em relação a uma nova janela de oportunidade que são os medicamentos de base biotecnológica, os biofármacos. É uma oportunidade que esta aí e que podemos ou não capturar.

Olhando o complexo de saúde e usando de maneira inteligente o poder de compra, podemos desenvolver outras ou atrair empresas que possam desenvolver no país plataformas competitivas dentro do sistema global. Temos na cadeia importante dada pelos grandes investimentos em petróleo e gás, em offshore, a possibilidade de desenvolver uma cadeia supridora de equipamentos e serviços mais sofisticados usando de maneira flexível e inteligente os requisitos de conteúdo local. O que, diga-se de passagem, nessa caso são bastante flexíveis aqui, falamos de um conteúdo local de 50/60%.

Valor: O senhor está falando do pré-sal?

Coutinho: Sim. E estamos aqui falando de processos progressivos, não são instantâneos. Se eu olhar o complexo industrial de aeronáutica, aeroespacial e defesa nós temos oportunidade de organizar melhor o nosso complexo. Temos uma empresa âncora exemplar que é talvez o exemplo solitário de empresa manufatureira internacionalmente competitiva brasileira que é a Embraer. Com a Embraer entrando no campo de defesa, e o governo tendo um conjunto de inciativas direcionadas ao reequipamento das forças armadas, isso pode gerar um processo virtuoso de aprendizado. Aqui tem uma outra área de oportunidades. Posso olhar também as energias. O Brasil tem um grande potencial em energias renováveis e é possível pensar que, a partir dessas oportunidades, posso desenvolver cadeias competitivas para essas energias.

Temos, finalmente, mas não exaustivamente, um agronegócio que sempre foi muito competitivo e, aliás, é o grande exemplo de obtenção de ganhos substanciais de produtividade nos últimos anos. Tal capacidade de competir abre oportunidade para o desenvolvimento de empresas supridoras, tanto de equipamentos agrícolas, seja instalação de base de empresa internacional, que usa o Brasil como plataforma competitiva, seja no desenvolvimento no Brasil de toda a indústria de genética vegetal e animal, seja toda a indústria química aplicada ao agronegócio, defensivos e fertilizantes. Outra área é o etanol de segunda geração. Então, há oportunidades. O que nos faltou? É pensar o desenvolvimento da indústria de maneira articulada às oportunidades concretas de inserção competitiva que o Brasil possa vir a ter, inclusive das commodities. Eu, outra vez reafirmo aqui o seguinte: se tivermos consciência da relevância estratégica da indústria e tivermos a sensatez de elaborar políticas que reconheçam a necessidade de competir internacionalmente, usem de maneira inteligente e flexível as políticas de adensamento de cadeias locais, capturem as oportunidades e usem as ferramentas e instrumentos que os países todos utilizam. Estes instrumentos são intensivos especialmente em estímulos, e inclusive, subsídios à inovação, e uso do poder de compra. É possível pensar no desenvolvimento de oportunidades para a indústria e projetar, no futuro, se o paradigma funcionar, que o Brasil tenha também empresas de expressão internacional nestes setores. Se o jogo da competição é global, é natural que ao desenvolver uma indústria competitiva ela participe do jogo global.

Valor: Mas não é contraditório que o exemplo que o senhor citou como melhor empresa da indústria brasileira é a Embraer, que atua em um setor onde não existe regra de conteúdo local?

Coutinho: A Embraer é uma exceção dentre todas as empresas internacionais do setor porque a base de suprimento local é a mais frágil quando comparada com as outras indústrias aeronáuticas do mundo.

Valor: Ela não é adensada no Brasil?

Coutinho:  Isso, ela tem pouco adensamento no Brasil. O que é característico dela é sua capacidade de desenhar produtos “estado-da-arte”, extremamente eficientes.  E mostrou que é possível funcionar, ainda que com baixo conteúdo local, razoavelmente bem. Mas se você perguntar, é o ideal? Não. Se for possível ter um adensamento mais eficiente, tanto melhor. O que eu quero também dizer é que o exemplo da Embraer é especial, mas ela não pode ser um paradigma para toda a indústria, ela tem características especiais. Ela faz parte de uma indústria de altíssima especialização no plano internacional, com pouquíssimos produtores. É estruturalmente diferente de outras indústrias.

Valor: Então não daria para replicar o modelo dela em outros setores?

Coutinho: Talvez seja possível replicar o modelo em alguns segmentos parecidos onde a especialização internacional é muito grande e onde as cadeias de suprimento são poucas e internacionalmente especializadas. Para setores que vistam esse figurino é possível. O que estou dizendo é que esse figurino não é paradigma para a indústria toda. É desconhecimento de economia industrial achar que é. E tem muita gente opinando em economia industrial sem entender sua complexidade.

Valor: Pegando esse gancho, os EUA estão aparentemente fazendo um processo de readensar suas cadeias, estão trazendo parte da produção de volta. Eles fazem isso em um ambiente no qual pode se tornar mais barato produzir lá que na China, em alguns setores. Quando o senhor fala desse seu sonho do Brasil criar condições de produzir industrialmente aqui, isso não depende de um novo equilíbrio macroeconômico? De um outro Estado, que não existe? Esse, por exemplo, consome só em tributos 35% do PIB anualmente e por isso também não consegue ter uma taxa de câmbio favorável ao processo industrial.

Coutinho: Concordo inteiramente com a agenda de eficiência fiscal e moderação da carga tributária. E mais do que isso, do aperfeiçoamento qualitativo da estrutura tributária brasileira. A estrutura tributária brasileira é muito falha, tem muitos impostos em cascata, a carga tributária é muito calcada em tributação indireta. Não tenho dúvida de que ela precisa ser aperfeiçoada. Agora, porém, ela não é uma determinante direta da taxa de câmbio em um mundo encharcado, com excesso de liquidez global. É uma questão mais complexa.

Valor: Mas um Estado que consome 35% da renda nacional, portanto, deixando pouco espaço para que o setor privado, por exemplo, destine sua poupança ao investimento, e não ao governo. A medida em que estamos, como todos reconhecem, atrasados nessa competição industrial, e precisamos criar um ambiente propício à produção industrial competitiva no Brasil, ele não depende de um novo Estado?

Coutinho: Não tenho nenhuma dúvida de que precisamos tornar o Estado brasileiro mais eficiente e mais capacitado. Essa é uma agenda que preocupa o governo e o governo tem buscado trabalhar nisso. Um Estado mais enxuto, mais eficiente, mais capacitado, não automaticamente produzirá  uma taxa de câmbio mais competitiva, nem automaticamente produzirá mais poupança e mais capacidade de financiamento doméstico. A agenda de financiamento e criação de poupança doméstica é uma agenda mais complexa. Ela significa uma mudança até cultural dos poupadores brasileiros, significa desindexar definitivamente os instrumentos financeiros, acabar com a indexação à Selic, ao CDI, migrar a base de depósitos de uma forma racional para prazos mais longos, e ter uma correspondência entre risco, retorno  e “duration” dos ativos financeiros. Uma grande agenda de evolução financeira do Brasil é uma capacidade de transformar depósito em poupança de longo prazo, em crédito de longo prazo,  que é a forma no capitalismo moderno de criar poupança doméstica. A poupança não se cria guardando dinheiro embaixo do colchão e economizando previamente, mas se cria através de mecanismos sólidos de estruturação de funding de longo prazo que pode se transformar em  suporte do investimento. Mas essa é outra agenda que tem, inclusive, alguma relação em ter um Estado mais eficiente, inclusive para administrar os incentivos de política da qual estamos falando. Mas eu quero sublinhar que os avanços recentes que têm sido feitos são relevantes. Acredito, por exemplo, que o painel de instrumentos para as políticas de fomento para o desenvolvimento industrial avançou nos últimos anos com, entre outros avanços, o que a Lei do Bem trouxe, inclusive com possibilidade de subvenção econômica ao setor privado para inovação e os outros incentivos que equalizaram, até modestamente, o que o Brasil pratica em relação ao paradigma internacional. Creio que a possibilidade de usar o poder de compra do Estado de uma maneira organizada é outro avanço, e creio que o desbloqueio dos instrumentos de financiamento de longo prazo para a inovação, pela Finep, e pelo BNDES, também são avanços concretos. A grande iniciativa chamada Inova Empresa, que tem recebido pouca atenção, mas que está em implementação concreta, vai resultar em frutos importantes. O que nós temos aqui é um conjunto forte de medidas de incentivo à inovação empresarial, lideradas pelo setor privado,  com instrumentos de fomento e de apoio ao adensamento industrial e à captura de novas oportunidades.

Valor: Mas olhando para esses setores e também para o programa de logística, onde só nele se tem pelo menos R$ 250 bilhões de projetos a serem financiados em um prazo relativamente curso, não vão faltar recursos? Qual a capacidade do BNDES de dar conta desse funding?

Coutinho: Essa já é outra pergunta, eu ainda nem mencionei a infraestrutura social, onde o Brasil é carente em metrô, trens urbanos, saneamento básico. Então, eu enxergo muitas fronteiras. E vejo os Estados brasileiros, graças ao longo cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, agora habilitados, uma parcela deles, a investir em infraestrutura como suporte aos investimentos federais. Ainda é importante lembrar minha visão de que é possível revitalizar e construir uma nova indústria competitiva no Brasil. Somando todos esses fatores não há porque o Brasil não possa se desenvolver a taxas mais altas. Certamente é preciso avançar em reformas que tornem o Estado mais eficiente, mas eu queria sublinhar uma coisa aqui: para a concretização de muitas destas oportunidades é preciso resgatar a capacidade de pensar e planejar a longo prazo. Temos que combinar inteligentemente o dinamismo do setor privado operando sobre regras de mercado, que é a forma mais eficiente de alocar recursos, com a capacidade ordenadora de visões de longo prazo que sejam mobilizadoras e deem um horizonte de previsibilidade para o setor privado. Conseguindo chegar lá, o Brasil se desenvolve com taxas de crescimento muito mais altas do que essas.

Valor: É curioso que o Brasil, tendo superado a hiperinflação, e estando há 18 anos no processo de estabilização da economia, ainda não consiga.

Coutinho: Eu discordo. Se eu olhar qual era a Formação de Capital Fixo sobre PIB até 2002/2003, ela estava em 15%/16%. Nós conseguimos agregar 4 pontos percentuais, chegamos a 19,5%, caímos para 18%, vamos voltar para 20%, 21%. Já agregamos isso com todas as precariedades e dificuldades de consolidação da última etapa da estabilização brasileira, que só veio mesmo quando acumulamos reservas, e deu para fazer um colchão de câmbio. Já conseguimos fazer um salto, a formação já subiu de 15% para 19%. Agora precisamos dar outro salto, de 19% para 23%. É possível, perfeitamente possível.

Valor: Mas voltando à pergunta: haverá funding? Até porque de 15% para 19%, o BNDES ficou de que tamanho? E para ir de 19% para 23%? E não só BNDES, mas pergunto do funding para todos os projetos de investimento, incluindo o programa de logística.

Coutinho: E a resposta é mobilização e desenvolvimento do mercado de capitais junto com o BNDES, uma agenda da qual já falamos. O BNDES pode crescer um pouquinho mais? Pode, mas não vai dar conta de tudo, e o mercado precisa se desenvolver.

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