A médica oncologista Nise Yamaguchi se classificou como “colaboradora eventual” do governo Bolsonaro em depoimento prestado à CPI da Covid nesta terça-feira (1º/6) e disse desconhecer a existência do gabinete paralelo que prestava consultoria ao presidente com informações relacionadas à pandemia de maneira informal.
Durante o depoimento, Nise foi confrontada com posições externadas anteriormente acerca da eficácia das vacinas contra a Covid-19, a utilização de medicamentos comprovadamente ineficazes do chamado ‘kit covid’ e, até mesmo, a defesa da imunidade de rebanho.
“A imunidade de rebanho é um fato. Não deve ser interpretada. A partir de um determinado momento, a comunidade adquiriria uma imunidade”, respondeu a doutora, questionada pelo relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL).
Após insistir se ela mantinha a posição em defesa da imunidade de rebanho, Nise Yamaguchi afirmou que, nesse momento, ela [imunidade de rebanho] é um fato que deve ser alcançado pela vacina”.
“Nós não podemos nos escudar em uma profissão milenar para desinformar a população, porque isso é contra os princípios fundamentais que nos fazem ser médicos. Nós não podemos usar uma profissão milenar como escudo para defender o indefensável e expor a vida de milhões de brasileiros, largá-los à própria sorte. Já são mais de 466 mil mortos porque ficamos envolvidos em teorias e interesses menores, ao invés de defender a vida”, criticou o senador Rogério Carvalho (PT-SE).
Já o senador Humberto Costa (PT-PE), avaliou como positivo o depoimento de Nise Yamaguchi por reforçar os elementos de que Bolsonaro contou com uma assessoria paralela que o aconselhou a adotar a tese da imunidade de rebanho como política pública de enfrentamento à pandemia.
“Foi muito produtiva a vinda da doutora à CPI. Para mim fica muito evidente que ela foi uma voz importante para a construção dessa concepção equivocada que o presidente Bolsonaro tem e que conduziu o Brasil para essa tragédia sanitária, econômica, política e social”, destacou.
Reuniões com Bolsonaro
Questionada pelo relator sobre encontros que teria tido com Bolsonaro, Nise Yamaguchi foi novamente evasiva nas respostas. Mas para o presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), ela disse que esteve na presença do presidente “umas quatro, cinco vezes”. Em nenhuma dessas ocasiões, segundo ela, esteve sozinha com ele.
Uma dessas reuniões, segundo a médica, foi do grupo interministerial que discutiu a pandemia. “Tivemos uma primeira reunião em relação a essa questão em que eu deixava claro que vinha contribuir como voluntária. Um comitê de crise institucional”, afirmou.
A posição da médica na CPI contrasta com depoimentos públicos anteriores em que ela demonstrava ter intimidade com Bolsonaro.
Repetindo o padrão das testemunhas alinhadas com o presidente Bolsonaro, a médica Nise Yamagushi mente descaradamente na #CPIdaCovid. pic.twitter.com/92VPHQW2Kw
— PT no Senado (@PTnoSenado) June 1, 2021
Questionada pelo senador Humberto Costa (PT-PE) sobre os temas tratados pelo comitê de crise, Nise afirmou que participou de apenas uma reunião do colegiado e, na oportunidade, não foram debatidos temas como o distanciamento social, o aumento do número de infectados pela Covid-19 e a necessidade de medidas sanitárias para diminuição do número de mortes.
“A senhora foi convidada a fazer parte de um gabinete de crise. E eu não sei que gabinete de crise era esse de Bolsonaro. Tudo que se tinha para discutir como medida não se falava. Na verdade, esse gabinete de crise era o gabinete da cloroquina. Isso reforça a tese de que havia um paralelismo [entre o governo] e esse agrupamento, esse gabinete de crise”, enfatizou Humberto.
O senador Humberto Costa reforçou a necessidade de a CPI ouvir o ex-ministro Osmar Terra, outro conhecido defensor da tese da imunidade de rebanho e que, possivelmente, seria o coordenador do gabinete paralelo. Osmar Terra é crítico ferrenho das medidas de restrição social para controle do vírus e já chegou a prever que a Covid-19 levaria o Brasil a ter apenas 800 óbitos pela doença caso adotasse a tese da imunidade de rebanho. Outra tese estapafúrdia adotada por Osmar Terra durante a pandemia é que ela duraria apenas 45 dias.
“A senhora tem posições muito claras e minha expectativa era de que vossa senhoria fosse a primeira a comparecer à CPI e dizer, de fato, o que pensa. Vamos ter que aguardar a vinda do ex-ministro Osmar Terra. Me parece que ele era o ministro [responsável] por esse gabinete paralelo. Espero que ele venha aqui e diga tudo que ele já defendeu sobre a pandemia, isolamento social e imunidade de rebanho”, apontou Humberto.
Bolsonaro buscou o primeiro contato com a médica
A médica também contou aos senadores que foi Bolsonaro quem a procurou inicialmente para falar sobre o tratamento precoce logo no início da pandemia. Ela não disse a data em que isso ocorreu.
“Eu tive a oportunidade no início [da pandemia] de receber dele a informação de que tinha um estudo discutido na França”, disse.
O estudo em questão é do cientista Didier Raoult a favor da hidroxicloroquina, divulgado em março de 2020. Dois meses depois, o uso do remédio contra a covid foi proibido na França.
“Toda semana ele [Didier Raoult] é citado aqui [na CPI]. Esse cidadão foi um dos primeiros a fazer uma pesquisa com cloroquina, com 48 pessoas, e disse que tinha dado resultado. Foi processado e depois disse que, de fato, o tratamento não traz vantagens. Até os que defendiam essa tese [do tratamento precoce], mudaram de opinião”, disse o senador Humberto Costa.
Em março do ano passado, a OMS lançou uma série de pesquisas padronizadas sobre potenciais tratamentos para a Covid-19. Entre os medicamentos analisados, estava a hidroxicloroquina.
Em julho, a organização suspendeu os estudos de forma definitiva, depois que os pesquisadores concluíram que a droga não reduziu a mortalidade de pacientes hospitalizados, mesmo com sinais de segurança associados ao uso do medicamento.
No Reino Unido e na União Europeia, a cloroquina e a hidroxicloroquina são usadas apenas sob prescrição médica para tratar malária e doenças autoimunes, como artrite reumatoide.
A Agência Europeia de Medicamentos defende que não há evidências científicas que comprovem a eficácia das substâncias contra a Covid-19 e afirma que estudos associaram doses altas dos medicamentos a um risco maior de problemas cardíacos e distúrbios neuropsiquiátricos, incluindo agitação, insônia, confusão, psicose e tendências suicidas.
Mudança na bula da cloroquina
Nise Yamaguchi disse aos senadores que não existiu a minuta sobre mudança de bula da cloroquina. A versão dita pela médica entra em contradição com os depoimentos do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e do presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Barra Torres.
Mandetta disse que viu, em uma reunião no Palácio do Planalto, no ano passado, uma minuta de decreto presidencial para mudar a bula da cloroquina. Já Barra Torres afirmou que a ideia de mudança na bula havia partido de Nise.
Fala contra as vacinas gera confusão
O senador Renan Calheiros (MDB-AL) exibiu um vídeo em que a médica Nise Yamaguchi falava que não era necessário que as pessoas tomassem vacina “aleatoriamente” e que a vacina não é “a única saída”, ao tentar comparar a eficácia dos imunizantes ao tratamento precoce.
A declaração provocou a irritação do presidente da CPI, senador Omar Aziz, que pediu aos brasileiros que desconsiderassem a manifestação da médica. “Quem está nos vendo nesse momento, eu peço que desconsidere as questões que ela diz aqui em relação a vacina. Ela não está certa. Ela não está certa. Vacina sempre preveniu. É melhor prevenir do que remediar. Isso é histórico”, disse.
“A senhora disse que não precisa vacinar aleatoriamente. Precisa vacinar todos os brasileiros. Não escutem o que ela está falando. Todos os brasileiros precisam de vacina. Essa CPI foi criada para isso. Desculpe, essa voz calma convence. Não acreditem nela. Tem que vacinar. A vacina salva, tratamento precoce não salva”, emendou Aziz.
Reconvocação de Fábio Wajngarten
O senador Rogério Carvalho apresentou pedido de reconvocação do ex-secretário de comunicação da Presidência Fábio Wajngarten para explicar, com base em dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), os gastos do governo Bolsonaro com campanhas informativas durante a pandemia.
De acordo com as informações obtidas pelo senador, o governo investiu apenas R$ 5 milhões em campanhas de divulgação da vacina. Enquanto isso, foram gastos R$ 19,5 milhões com o chamado “tratamento precoce”. Outros R$ 30 milhões foram gastos com peças publicitárias de defesa a volta ao trabalho.
“Isso mostra claramente que a pandemia foi conduzida no sentido de promover a expansão do contágio natural entre brasileiros e brasileiras. Estamos agora colhendo os frutos, que são os mais fúnebres”, lamentou o senador.