DIREITO AO AMOR

Para além de visibilidade, lésbicas cobram orçamento para políticas públicas

Em audiência na CDH, especialistas, representantes do governo e ativistas LGBTQIA+ denunciaram a violação de direitos das lésbicas, apontaram a falta de dados oficiais e exigiram recursos públicos para políticas direcionadas a essa população.

Waldemir Barreto/Agência Senado

Para além de visibilidade, lésbicas cobram orçamento para políticas públicas

CDH celebra Dia Nacional de Visibilidade Lésbica

“Não é pauta identitária, e muito menos pauta de costume, a gente está falando das nossas vidas, do nosso modo de viver, da nossa atuação, daquilo que de fato é muito caro e importante e que a gente não vai negociar.”

Com essa fala poderosa, a deputada federal Daiana Santos (PCdoB-RS) abriu a audiência pública conjunta das comissões de Direitos Humanos do Senado e da Câmara, promovida na quarta-feira (28/8) para comemorar o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, celebrado neste 29 de agosto. O requerimento para o debate foi apresentado pelo presidente da CDH, senador Paulo Paim (PT-RS).

“É fundamental fomentar o diálogo sobre a pluralidade e buscar o respeito aos direitos da comunidade lésbica. Sabemos que o número de casos de violência contra lésbicas no Brasil tem aumentado. O Brasil precisa enfrentar corajosamente essa questão, que é uma questão de direitos humanos”, afirmou Paim.

Lésbicas no Orçamento

Uma das reivindicações apontadas como prioritárias pelas debatedoras foi a inclusão da população lésbica no orçamento público.

A deputada federal Carla Ayres (PT-SC) enfatizou que não se faz política pública sem recursos do Estado. “Nós precisamos estar no centro do entendimento da União de que investir em políticas públicas igualitárias é garantir, efetivamente, a dignidade humana para a nossa população e para todo o povo brasileiro. Precisamos garantir que políticas para lésbicas estejam no orçamento.”

Para a pesquisadora e ativista Raquel Mesquita, a discussão do orçamento deve ser feita de forma transversal, envolvendo vários ministérios, não só o das Mulheres ou o de Direitos Humanos. “Tem que ser um tema central e transversal, porque nós estamos em todos os espaços. (…) Então o que a gente tem que trazer também à pauta é que nós existimos, para que a visibilidade seja para todos e todas, e que não seja apenas no dia 29 de agosto.”

A representante do Ministério das Mulheres, Carla Ramos, enfatizou que o orçamento está na linha de frente para evitar retrocessos e garantir direitos para lésbicas no país, e que o envolvimento de estados e municípios é fundamental. “Que a gente consiga, de fato, estruturar políticas públicas, e que elas aconteçam e sejam organizadas pelo Estado brasileiro, isso quer dizer por todos os ministérios e demais entidades, inclusive entidades subnacionais.”

A reflexão do sequestro do orçamento da União pelo Parlamento foi levantada pela secretária substituta da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, Bel Sá. “Estamos aqui também para que a gente tenha, de fato, orçamento, porque não adianta a gente construir qualquer tipo de proposta se a gente não consegue levar adiante. Da forma como estão sendo colocadas as emendas parlamentares, neste lugar, neste momento, acaba dificultando que o governo federal possa, de fato, seja em qualquer ministério, fazer o que tem que ser feito, que é levar a política pública para a ponta.”

Exemplos não faltam. Bel Sá relatou que, até agora, não conseguiram licitar o espaço para abrigar a Conferência LGBTQIA+ prevista para 2025, porque não há dinheiro. Ela também lembrou do desmonte promovido pelos golpistas. “É só pegar o que aconteceu nesses últimos seis anos, em que teve um desmonte de tudo que a gente vinha construindo. Então a gente precisa retomar. E eu acho que é o que a gente está fazendo agora (…) construindo políticas que dialoguem com a nossa sobrevivência, porque nós estamos aqui para sobreviver.”

A deputada Daiana Santos resumiu: “Nós queremos a responsabilidade de um Estado que investe e respeita as pessoas. E é para isso que a gente luta. (…) É isto que a gente quer: respeito, respeito para construir a política pública, respeito para poder acessar o mercado de trabalho, respeito para poder estar nas universidades, respeito para poder viver a rua, viver as cidades, ter direito à cidade sem ter medo das violências múltiplas que vão se sobrepondo, principalmente, se esses corpos são negros e são mulheres”.

Paulo Paim se comprometeu em incluir as demandas da comunidade lésbica nas emendas de comissão. Porém, lamenta que, historicamente, as comissões de direitos humanos recebem a menor verba. “Por que uma Comissão de Direitos Humanos, às vezes, recebe R$500 mil e uma outra recebe R$5 bi? Direitos humanos são política pública!”.

Invisibilidade

Para que políticas públicas voltadas para lésbicas sejam formuladas e executadas, além de dinheiro, é preciso ter dados oficiais, como apontou a pesquisadora Raquel Mesquita.

“A partir dessa ausência de dados, existe uma dificuldade na construção de políticas públicas para a nossa população, porque nós não sabemos quantas somos, nem o nosso perfil. (…) O Estado escolhe quem vive, como vive e quem vai morrer. A gente identifica que essa ausência de dados não é por acaso. É uma ausência proposital, porque ela visa também a essa necropolítica, esse ‘deixar morrer’ certos corpos”, lamentou.

Carla Ramos avalia que essa falta de dados é uma violência estatal. “Como que a nós não é permitido saber de nós? Isto é o ápice da violência de Estado que a gente pode passar: a gente não pode saber de nós.”

Para suprir essa falta de dados e alterar o cenário de subnotificações de violação de direitos, a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) e associação lésbica feminista do Distrito Federal Coturno de Vênus produziram o LesboCenso. Na primeira etapa, foi feita uma pesquisa quantitativa com 19.455 lésbicas maiores de 18 anos, entre agosto de 2021 e maio de 2022. A segunda etapa é qualitativa – com entrevistas mais aprofundadas –, está em fase de análise de dados e tem o apoio do Ministério das Mulheres.

O levantamento reuniu dados sobre autoidentificação, trabalho, educação, saúde, relacionamentos, relações familiares e redes de apoio que as lésbicas possuem nas diversas regiões do país. O resultado do trabalho foi apresentado durante a audiência pública pela pesquisadora Raquel Mesquita, que faz parte da equipe.  

A coordenadora-geral de Promoção dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos, Dayana Brunetto, parabenizou as iniciativas dos movimentos sociais e da universidade, mas cobrou a responsabilidade do Estado. “O desafio no qual nós temos trabalhado incansavelmente no ministério e na secretaria nacional é: o Estado precisa assumir essa produção de dados. As pesquisas dos movimentos sociais são incríveis, mas o Estado tem que assumir essa função e produzir dados sobre lésbicas e sapatões como produto das outras pessoas. Simples assim.”

LesboCenso

Uma limitação da pesquisa destacada por Raquel Mesquita é que a equipe teve dificuldade de chegar à periferia, já que o trabalho ocorreu durante a pandemia e por meio de questionário online. Assim, o perfil das respondentes é majoritariamente de mulheres brancas de classe média.

Os principais tipos de violência apontados foram assédio moral (31,36%), seguido de assédio sexual (20,84%); 78% das respondentes disseram que já sofreram algum tipo de lesbofobia; 6,26% conheciam alguma mulher lésbica que morreu em função de sua orientação sexual. Das que sofreram violência, 38% não reagiram e apenas 6,9% procuraram a polícia ou o Judiciário.

“Então, a principal estratégia ainda é o silenciamento, o que é muito triste, se a gente for pensar, apenas uma pequeníssima parte procurou a polícia ou o Judiciário. Então, qual é o acesso dessa mulher à Justiça?”, questionou Mesquita.

Uma demanda apontada na audiência foi a inclusão dos crimes de lesbocídio e “estupro corretivo” no Código Penal.

Disque 100

Na terça-feira (27/8), os ministérios das Mulheres e dos Direitos Humanos assinaram um acordo para fortalecer a rede de atendimento e aprimorar o fluxo de denúncias, com objetivo de garantir direitos e acesso à Justiça, à saúde, à educação e à assistência social.

“Esse acordo insere as mulheres lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e intersexo nos serviços do Disque 180, de forma específica, acolhedora, qualificada e ética. Na Casa da Mulher Brasileira, vai ter um protocolo específico e isso é importantíssimo para o nosso grupo social”, detalhou a representante do Ministério dos Direitos Humanos, Dayana Brunetto.

Bel Sá, da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, acredita que o acordo vai permitir a ampliação de pesquisas e possibilitar o levantamento nacional de dados dessa população.

Violências por todo lado

A vice-presidente do Conselho Nacional do Direito das Pessoas LGBTQIA+, representante do Fórum de Lésbicas do Ministério das Mulheres, Janaína Oliveira, apontou vários tipos de violência, para além da física.

“Há uma outra violência, que é uma violência a que todas as mulheres estão sujeitas, mas a que nós, lésbicas, também estamos sujeitas: é essa característica de assediar a nossa existência, de assediar a nossa luta, de assediar a nossa construção e de, o tempo todo, questionar a nossa capacidade, especialmente a violência política no Legislativo.”

Violência Política

Janaína Oliveira cobrou a responsabilidade do poder público para combater a violência política no país. “Quero provocar os estados e os municípios para que olhem, que protejam, que cuidem, porque a gente está cansada de ouvir, todo o tempo, que mais um mandato de uma companheira lésbica foi um mandato que sofreu ameaças.”

A deputada Daiana Santos rechaçou qualquer acusação de vitimização e foi direto ao ponto. “Todas as vezes em que nos levantamos, todas as vezes em que começamos a tensionar, a colocar o dedo nas questões mais centrais para nós e a falar das nossas identidades, nós sofremos ameaça, e essas ameaças tratam justamente de quem nós somos, da nossa orientação, das nossas identidades. Trata-se daquilo que é mais íntimo como uma forma, inclusive, de nos intimidar.”

Violência na saúde

O LesboCenso mostrou que, apesar da maioria das mulheres que responderam o questionário ter acesso à saúde privada, aproximadamente 25% sofreram lesbofobia em atendimento ginecológico, e 72,9% sentiram constrangimento em mencionar a orientação sexual.

Para Raquel Mesquita, o número de violência ginecológica pode ser maior, já que muitas mulheres não revelam sua orientação sexual. Outro problema apontado pela pesquisadora é que esse silenciamento impede uma anamnese correta pela equipe de saúde.

Olhando para essa realidade, a deputada Daiana Santos apresentou um projeto de lei sobre protocolos de atendimento às mulheres lésbicas e bissexuais na atenção básica do SUS. “A gente precisa retirar o estereótipo, o estigma e as marcas da diversidade quando ela acessa o serviço de saúde”, justificou.

No que diz respeito à saúde reprodutiva, a deputada Carla Ayres propôs na audiência a formação de grupo de trabalho com representantes dos Três Poderes para tratar de uma nova normativa para inseminação que contemplem mulheres lésbicas e bissexuais, e para destravar o registro das crianças com duas mães.

“No debate em relação à inseminação, à saúde sexual e reprodutiva e ao direito da reprodução assistida das mulheres, não só por adoção, mas também as que desejam engravidar, seja por qual método for, o Ministério da Saúde precisa estar envolvido nisso também. Então, acho que é um uma pauta que está aberta, necessária e urgente para se discutir”, enfatizou.  

Preconceito

A conscientização da população e educação sexual nas escolas são pontos importantes no combate ao preconceito. Raquel Mesquita defendeu uma política pública para “conscientizar que existem outros corpos, que existem dissidências sexuais, que existem minorias e que o fato de você ser cisgênero, heterossexual não significa que você seja a única pessoa que existe, e essa seja a única possibilidade. Na verdade, existem múltiplas possibilidades”.

“Não é pauta de costume, é sobre nossas vidas”

“A gente não quer ficar o tempo todo tratando das questões que falam das violências contra nós. A gente não quer isso, porque para além, muito além da nossa orientação dentro dessa sociedade – e quando digo isso falo inclusive da postura política e não da nossa identidade de gênero –, para muito além disso, nós somos indivíduos pensantes, nós estamos aqui produzindo política, nós nos colocamos à disposição para fazer a ruptura de um sistema que não nos comporta, mas que necessariamente precisa nos ouvir”, detonou Daiana Santos.

Carla Ayres ponderou sobre a importância histórica de uma audiência pública como essa no Parlamento, sob a liderança de duas parlamentares abertamente lésbicas – ela e Daiana. “Nós temos, na Câmara dos Deputados – um espaço que tantas vezes protagoniza os ataques contra nossa existência, contra os nossos direitos – duas parlamentares lésbicas. Estamos aqui falando por nós mesmas e sendo a voz de muitas daquelas que já ficaram pelo caminho, daquelas que ainda estão nos territórios sofrendo muito com o preconceito, pela memória daquelas que se foram pela crueldade que ainda é ser quem somos no nosso país.”

A deputada petista arrematou com a defesa da democracia e dos direitos constitucionais: “A gente sabe que cada passo que a gente avança é revolucionário no sentido da profundidade da democracia que a gente garante e também daquilo que a gente almeja para uma sociedade mais justa, mais igualitária, sem preconceitos, mais democrática, em que todos e todas tenham, de fato, cumprido o direito constitucional de que todas e todos somos iguais perante a lei”.

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