Entrevista

Paulo Paim: “Nova Constituinte, hoje, seria enorme retrocesso”

O parlamentar foi um dos responsáveis por elaborar a Constituição de 1988. Ele define o texto como um patrimônio do povo e descarta apoio para a elaboração de um novo documento — que, segundo ele, pode resultar em perda de direitos

Alessandro Dantas

Paulo Paim: “Nova Constituinte, hoje, seria enorme retrocesso”

O senador destaca, na entrevista, que a Constituição é um texto avançado, mas há muitos dispositivos que até hoje aguardam regulamentação

Metalúrgico, líder sindical, deputado constituinte e atualmente senador da República, Paulo Paim, deputado à época foi responsável por inserir no texto da Constituição de 1988 — a chamada Constituição Cidadã — conquistas fundamentais para os trabalhadores, como o direito à greve, a redução da jornada de trabalho, a valorização do salário mínimo e a inclusão de pautas sociais estruturantes, como previdência, saúde, proteção aos idosos e combate ao racismo. Ao Correio, ele relembra bastidores da Constituinte, comenta a atual conjuntura política e defende com firmeza a preservação do Estado Democrático de Direito. Fala sobre os riscos do avanço da extrema direita, a tentativa frustrada de golpe no fim de 2022 e em 8 de janeiro, além do papel da juventude na defesa das instituições.

O senhor foi uma das vozes mais atuantes da Assembleia Constituinte de 1987. Como foi participar daquele momento histórico?

Foi grandioso. Um dos melhores momentos da minha vida. Na época, todos queriam ser constituintes. O senador Pedro Simon dizia que, apesar de ter sido deputado, governador e senador, teria gostado mesmo de ser constituinte. Eu cheguei lá porque fui escolhido num congresso estadual de trabalhadores. Eu era metalúrgico. A plenária decidiu, por unanimidade, que eu deveria ser o candidato dos trabalhadores. Mas, desde o início, eu disse: não vou à Constituinte apenas defender o metalúrgico, vou defender todos, trabalhadores urbanos e rurais, empresários, idosos, negros, indígenas, pessoas com deficiência, crianças. Minha luta sempre foi pela justiça social. Já naquele momento, nossa primeira reunião foi na CONTAG, com o movimento sindical. A partir daí, mergulhei na área da seguridade social, que até hoje é o eixo do meu mandato.

Quais foram os temas centrais da sua atuação na Constituinte?

Foram vários. O primeiro deles foi o salário mínimo. Queríamos que ele fosse suficiente para cobrir todas as necessidades básicas do trabalhador e da sua família. Isso está garantido na Constituição, embora nem sempre seja cumprido na prática. Outro tema importante foi a redução da jornada de trabalho. Defendíamos as 40 horas semanais — vínhamos de 48. Após muita negociação, conseguimos reduzir para 44 horas. Foi um grande avanço. Mais recentemente, em 2015, apresentei uma PEC propondo 36 horas, que ainda está em debate. Outro ponto fundamental foi o direito de greve. Tivemos que negociar muito, inclusive, com o Centrão, mas conseguimos aprovar um texto que garantiu esse direito constitucional. Também batalhei pelas causas sindicais, pela estabilidade no emprego, aposentadoria especial, saúde e assistência social. Foi um capítulo longo, mas absolutamente necessário.

O senhor mencionou a importância da luta sindical e da articulação com outros parlamentares. Como foi construir consensos na Constituinte?

Foi desafiador, mas havia espaço para o diálogo. O Centrão da época era liderado pelo João Passarinho, e contava com nomes como Magalhães Neto e Delfim Netto, com quem, apesar das divergências, conseguimos construir pontes. Todos tinham posições firmes, mas aceitavam conversar. Foi com base nesse diálogo que avançamos. A reforma agrária, por exemplo, foi extremamente tensa, houve até briga no plenário, mas conseguimos incluir um texto razoável. Cada um cedeu um pouco. Eu mesmo participei de articulações intensas, sempre buscando consenso para que as pautas sociais tivessem espaço.

A Constituição de 1988 é frequentemente chamada de Constituição Cidadã. O senhor acredita que essa definição ainda é válida?

Sim, desde que não a retalhem. Eu me preocupo com a quantidade de emendas constitucionais que vêm sendo propostas com o argumento de melhorar o texto, mas que, na verdade, podem enfraquecê-lo. A Constituição foi pensada para ser detalhista, exatamente para proteger os direitos sociais e trabalhistas. Fui criticado por querer fazer da Constituição um “acordo coletivo de sindicato”, mas insisti: quanto mais detalhado o texto, mais difícil será alterá-lo por leis ordinárias. Se continuarem com essa avalanche de emendas, acabaremos com outra Constituição. E não vejo ambiente para uma nova Constituinte produzir um texto melhor que o de 1988.

Na sua visão, quais os impactos concretos da Constituição de 1988 na vida do trabalhador brasileiro?

Imensos. A Carta de 1988 garantiu direitos básicos como previdência, assistência, saúde, segurança no trabalho e combate ao racismo. Foram avanços históricos. Depois da promulgação, viajei o país inteiro para defender o texto. Houve grande participação popular na Constituinte. A sociedade pôde falar, opinar, ocupar a tribuna. Foi um processo democrático de fato. A Constituição ainda precisa ser regulamentada em muitos pontos, como o direito de greve do servidor público, mas é uma base sólida. O que precisamos é cumprir e regulamentar o que já está previsto, não reescrever tudo.

Durante os trabalhos da Constituinte, havia receio de intervenção militar? Como os parlamentares lidavam com esse temor?

Havia, sim, um clima de vigilância. A gente sabia que qualquer passo em falso poderia colocar tudo a perder. Eu costumo dizer: “olhai e vigiai”. O golpe de 64 ainda estava muito vivo na memória. Então, trabalhávamos com atenção redobrada, negociando muito, dialogando com todos os setores, inclusive com aqueles mais conservadores. Essa cautela foi fundamental para que conseguíssemos avançar sem rupturas. O fato de termos construído uma Constituição que sobrevive até hoje comprova que o caminho foi acertado.

O senhor considera que a tentativa de golpe revelou alguma fragilidade na nossa transição democrática?

Não. Mostrou, na verdade, a força da nossa democracia. Aqueles que tentaram derrubar o governo legitimamente eleito foram derrotados. O Judiciário agiu com firmeza, o Parlamento deu sustentação às medidas, e a sociedade reagiu. Se não tivessem tentado o golpe, estariam disputando as eleições normalmente. Mas fizeram a escolha errada e hoje vivem as consequências. Democracia é isso: ganha quem tem mais votos. Ponto.

Como o senhor avalia o comportamento das Forças Armadas hoje, especialmente após a redemocratização e em comparação com o período constituinte? Houve avanço ou retrocesso?

Houve um desvio de rota no governo anterior, quando as Forças Armadas foram atraídas para uma atuação que não era delas. Em vez de defenderem o Estado e a democracia, como determina a Constituição, houve tentativa de interferência política — o que só poderia dar errado. Mas hoje eu vejo que elas voltaram ao seu papel institucional. Estão dando exemplo. No governo do presidente Lula, não houve conflito com os militares. O diálogo prevaleceu. E esse diálogo é essencial para mantermos a democracia sólida e em preparação para as eleições de 2026.

Quais conquistas da Constituição o senhor considera inegociáveis e que devem ser preservadas a qualquer custo?

As chamadas cláusulas pétreas, que garantem o Estado Democrático de Direito, os direitos individuais, sociais e coletivos. Esses pontos não podem ser alterados por nenhuma emenda constitucional. A sabedoria da época nos levou a colocar isso no texto justamente para blindar o coração da Constituição contra retrocessos. Ulysses Guimarães dizia: discordar, dialogar, discutir é legítimo, afrontar a Constituição, jamais. E é isso que sigo defendendo.

Na sua opinião, as instituições democráticas, especialmente o Congresso, estão hoje à altura da defesa da Constituição de 1988?

Sim, apesar das críticas. Todos os parlamentares estão aqui porque foram eleitos pelo voto direto, inclusive o presidente anterior. Ninguém questionou sua eleição. Ele só errou ao não aceitar a derrota. O Congresso representa o que a sociedade escolhe. É claro que existem diferenças ideológicas, e muitas vezes somos minoria em certas pautas. Mas é preciso que o povo compreenda que é no Congresso que se decide o preço do pão, da gasolina, da escola. Por isso, é fundamental votar com consciência, escolhendo quem tem compromisso com os direitos do povo.

O que mudou no comportamento da oposição ao longo dos anos? O debate perdeu qualidade?

Infelizmente, sim. Antes, mesmo na oposição, havia debate de ideias. Hoje vemos teatralizações, provocações com bonés, gritos, celulares levantados. Isso empobrece o ambiente político. O plenário deve ser um espaço solene, de respeito. Não se trata de proibir gestos, mas de preservar a seriedade da política. Divergir é saudável, faz parte da democracia, mas precisa haver conteúdo, proposta, respeito mútuo. Não é no grito que se convence.

Qual mensagem o senhor deixa para os jovens sobre a importância da política e os riscos que rondam a democracia?

É fundamental que os jovens se interessem por política. Fico triste quando dizem que eles são alheios ao processo político. A política define tudo em nossas vidas, da escola à comida no prato. Este é meu último mandato, defendo a renovação política. Já fui deputado quatro vezes e senador três. A juventude precisa ocupar espaços, renovar instituições e trazer novas ideias. Defendo sempre três pilares: democracia, honestidade e frente ampla. Precisamos de uma frente ampla de pessoas comprometidas com o bem comum, que defendam causas e não interesses individuais.

Em seus 40 anos de vida pública, o senhor já presenciou movimentos políticos tão radicais como os que ganham força atualmente?

Não, com toda sinceridade. Já vi muito, vivi muito, mas a ascensão desses grupos de extrema-direita, com discurso de ódio, é algo inédito. Seja Trump, Milei, Maduro ou outros — são expressões distintas, mas que colocam a democracia em risco. No Brasil, precisamos estar atentos para não permitir retrocessos. O caminho é a defesa da democracia, da liberdade, da justiça. E isso se faz com debate, com pluralidade, com respeito às instituições e às regras do jogo.

O senhor mencionou que muitos aspectos previstos na Constituição ainda não foram regulamentados. Isso compromete a efetividade da Carta de 1988?

Sem dúvida. A Constituição é um texto avançado, mas há muitos dispositivos que até hoje aguardam regulamentação. Um exemplo claro é o direito de greve para os servidores públicos. Está previsto na Constituição, mas nunca foi regulamentado. Em vez de ficarmos mexendo no texto constitucional com emendas, deveríamos nos concentrar em regulamentar aquilo que já está previsto. Isso sim daria efetividade à Constituição. Precisamos parar de pensar em mudar a Carta e começar a aplicá-la como ela foi concebida.

O senhor foi um dos parlamentares que ajudaram a definir o capítulo sobre os crimes de racismo na Constituição. Como foi essa conquista?

Foi uma luta dura, mas necessária. O caso de um menino negro, assassinado em Porto Alegre dentro de um supermercado, me marcou profundamente. Aquilo me motivou a lutar para que a Constituição classificasse o crime de racismo como inafiançável e imprescritível. E conseguimos. Foi uma das conquistas mais simbólicas da Constituinte, porque tocava no cerne da desigualdade histórica do Brasil. Ainda temos muito a avançar, mas a base legal está lá. É preciso fazer valer.

Há quem defenda uma nova Assembleia Constituinte. O senhor concorda com essa ideia?

De jeito nenhum. Uma nova Constituinte hoje representaria um enorme retrocesso. O Congresso atual, com a correlação de forças que temos, não escreveria um texto melhor do que o de 1988 — muito pelo contrário. Corremos o risco de perder direitos históricos, principalmente para os mais vulneráveis. A Constituição de 1988 é um patrimônio do povo brasileiro. Deve ser respeitada, protegida e aplicada. Não precisamos de outra. Precisamos cumpri-la.


Quais seriam, na sua visão, os maiores riscos à democracia brasileira hoje?

O maior risco é a banalização do discurso antidemocrático. Quando grupos tentam desacreditar as instituições, promover desinformação ou relativizar tentativas de golpe, estão, na verdade, atacando a base da nossa democracia. Felizmente, o Brasil respondeu à altura aos ataques de 8 de janeiro. As instituições reagiram com firmeza. E é isso que precisa continuar acontecendo: tolerância zero com qualquer tentativa de ruptura institucional.

Por fim, senador, que legado o senhor espera deixar para as próximas gerações?

Espero ser lembrado como alguém que defendeu causas e não cargos ou interesses pessoais. Alguém que sempre esteve ao lado do trabalhador, da democracia, da justiça social. Minha trajetória começou no chão de fábrica, passou pelos sindicatos e chegou ao Senado. Sempre com o mesmo propósito, de melhorar a vida do povo. Se cada jovem entender que defender causas é o verdadeiro sentido da vida pública, teremos um futuro muito melhor. A democracia precisa deles. E eu acredito que eles vão honrar essa responsabilidade.

Entrevista publicada pelo Correio Braziliense

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