Senador defende o direito de livre expressão |
O senador Eduardo Suplicy (PT-SP) foi à tribuna do plenário, nesta segunda-feira (21), para pedir que o Congresso Nacional se posicione sobre a publicação de biografias e faça uma reflexão a respeito da polêmica que tem surgido sobre a liberdade de autores. “Em que medida os escritores precisariam ter a autorização das pessoas biografadas? Em que medida se pode assegurar a liberdade de opinião, de expressão, de imprensa, liberdade de as pessoas que realizam pesquisas efetivamente podem escrever a respeito da vida das pessoas?”, questionou o senador.
Suplicy lembrou que o plenário da Câmara dos Deputados se prepara para deliberar sobre o Projeto de Lei (PL 393/2011), de autoria do deputado Newton Lima (PT-SP), que prevê a dispensa de autorização prévia à publicação de livros, imagens ou gravações que relatem a trajetória de pessoas públicas.
A proposta altera o Código Civil (Lei 10.406/02), que hoje prevê autorização para publicação ou divulgação de imagens. Pelo projeto, no caso das pessoas públicas, ou seja, artistas, políticos ou celebridades, não seria necessária essa autorização. De acordo com o deputado Newton Lima, a previsão contida no código tem o nítido caráter de censura.
“Quero transmitir que, em princípio, sou a favor do direito de livre expressão, da liberdade de as pessoas poderem escrever sobre a vida dos outros, mas com os devidos cuidados para não se divulgar calúnias, mentiras e, sobretudo, coisas que possam ser ofensivas à pessoa do biografado”, disse Suplicy.
O petista aproveitou a ocasião para ler carta do jornalista norte-americano Benjamim Moser – autor da biografia da escritora Clarice Lispector – endereçada ao cantor e compositor Caetano Veloso, e publicada em 9 de outubro último, na Folha de S Paulo. No texto, o autor critica o posicionamento de Caetano, que, juntamente com outros artistas, defende a prévia autorização dos biografados.
Benjamin classifica a postura de Caetano Veloso como “escandalosa e indigna de uma pessoa que tanto tem dado para a cultura do Brasil”. “Avalio que Benjamin Moser, num diálogo tão respeitoso e amigo de Caetano Veloso, contribui para que nós possamos pensar bem a respeito desse tema”, disse Suplicy.
O senador ainda mencionou o posicionamento da ministra da Cultura, Marta Suplicy, que foi veiculado na edição desta segunda (21), pelo jornal O Estado de S. Paulo. Na entrevista, a ministra defende a publicação das biografias, tendo como apoio a liberdade de expressão. Porém, ela acredita que deve haver a aplicação de multas expressivas para os autores que infringirem a verdade e a imagem do biografado. Apesar disso, Marta Suplicy faz algumas ponderações.
“Surge o problema complexo do que seja a verdade – que sempre pode ser entendida ou interpretada por vários ângulos. E, se for verdade, que nível de autoridade a pessoa tem sobre o que ela quer preservar de sua intimidade? Existe um problema mais fácil: quando o biógrafo falta com a verdade. O debate é saudável numa democracia, desde que não entremos em ofensas pessoais, absolutamente desnecessárias e criadoras de turbulência no processo”, avaliou a ministra.
Suplicy lembrou que ele mesmo foi citado na biografia de José Dirceu, escrita pelo jornalista Otávio Cabral, em situações que, segundo ele, não ocorreram como aparecem no livro. Para o petista, isso terminou por prejudicar as vendas da obra e o próprio autor. “Diversas citações da minha interação com José Dirceu – e eu não fui consultado – não são precisas. E eu me senti na responsabilidade e estou escrevendo um esclarecimento ao Otávio Cabral”, disse.
Conheça a íntegra do Projeto de Lei 393/2011
Confira a íntegra da carta de Benjamin Moser, lida em plenário pelo senador Eduardo Suplicy:
Caro Caetano, nos EUA, quando eu era menino, havia uma campanha para prevenir acidentes na estrada. O slogan rezava: “Amigos não deixam amigos bêbados dirigir”. Lembrei disso ao ler suas declarações e as de Paula Lavigne sobre biografias no Brasil. Fiquei tão chocado que me sinto obrigado a lhe dizer: amigo, pelo amor de Deus, não dirija.
Nós nos conhecemos há muitos anos, desde que ajudei a editar seu “Verdade Tropical” nos EUA. Depois, você foi maravilhoso quando lancei no Brasil a minha biografia de Clarice Lispector, escrevendo artigos e ajudando com o alcance que só você possui. Admiro você, de todo o meu coração.
E é como amigo e também biógrafo que te escrevo hoje. Sei que você sabe da importância de biografias para a divulgação de obras e a preservação da memória; e sei que você sabe quão onerosos são os obstáculos à difusão da cultura brasileira dentro do próprio Brasil, sem falar do exterior.
Fico constrangido em dizer que achei as declarações suas e da Paula, exigindo censura prévia de biografias, escandalosas, indignas de uma pessoa que tanto tem dado para a cultura do Brasil. Para o bem dessa mesma cultura, preciso dizer por quê.
Primeiro, achei esquisitíssimo músicos dizerem que biógrafos querem ficar com “fortunas”. Caetano, como dizem no Brasil: fala sério. Ofereço o meu exemplo. A biografia de Clarice ficou nas listas de mais vendidos em todo o Brasil.
Mas, para chegar lá, o que foi preciso? Andei por cinco anos pela Ucrânia, pela Europa, pelos EUA, pesquisando nos arquivos e fazendo 257 entrevistas. Comprei centenas de livros. Visitei o Brasil 12 vezes.
Fiquei contente com as vendas, mas você acha que fiquei rico, depois de cinco anos de tais despesas?
Faça o cálculo. A única coisa que ganhei foi a satisfação de ver o meu trabalho ajudar a pôr Clarice Lispector no lugar que merece.
Tive várias vantagens desde o início. Tive o apoio da família da Clarice. Publico em língua inglesa, em outro país. Tenho a sorte de ter dinheiro próprio. Imagine quantos escritores no Brasil reúnem essas condições: ninguém.
Mas a minha maior vantagem foi simplesmente ignorância. Não fazia ideia das condições em que trabalham escritores e jornalistas brasileiros. Não sabia o quanto não se pode dizer, num clima de medo que lembra a época de Machado de Assis, em que nada podia ofender a “Corte”.
Aprendi, por exemplo, que era considerado corajoso escrever uma coisa que todo no mundo no Brasil sabe há quase um século: que Mário de Andrade era gay. Aprendi que era até inusitado chamar uma cadeira de Sérgio Bernardes de feia.
Aprendi o quanto ganham escritores, jornalistas e editores no Brasil, e quanto os seus empregos são inseguros e como são amedrontados por ações jurídicas, como essas com que a Paula, tão bregamente, anda ameaçando.
É um tipo de censura que você talvez não reconheça por não ser a de sua época. Não obriga artistas a deixarem o país, não manda policiais aos teatros para bater nos atores. Mas que é censura, é. E mais eficaz do que a da ditadura. Naquela época, as obras eram censuradas, mas existiam. Hoje, nem chegam a existir.
Você já parou para pensar em quantas biografias o Brasil não tem? Para só falarmos da área literária, as biografias de Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Cecília Meirelles, cadê? Onde é que ficou Manuel Bandeira, Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre? Você nunca se perguntou por que nunca foram feitas?
Eu queria fazer. Mas não vou. Porque o clima no Brasil, financeiro e jurídico, torna esses empreendimentos quase impossíveis. Quantos escritores brasileiros estão impedidos de escrever sobre a história do seu país, justamente por atitudes como as suas?
Por isso, também, essas declarações, de que o biógrafo faz isso só por amor ao lucro, ficam tão pouco elegantes na boca de Paula Lavigne. Toda a discussão fica em torno de nossas supostas “fortunas”.
Você sabe que no Brasil existem leis contra a difamação; que um biógrafo, quando cita uma obra ainda com “copyright”, tem obrigação de pagar para tal uso. Não é diferente de você cantar uma música de Roberto Carlos. Essas proteções já existem, podem ser melhoradas, talvez. Mas falo de algo bem diferente do que você está defendendo.
De qualquer forma, essas obsessões com “fortunas” alheias fazem parte de um Brasil do qual eu menos gosto.
do Brasil do qual eu menos gosto. Une a tradicional inveja do vizinho com a moderna ênfase em dinheiro que transformou um livro, um disco, uma pintura em “produto cultural”.
Não é questão de dinheiro, Caetano. A questão é: que tipo de país você quer deixar para os seus filhos? Minha biografia foi elogiosa, porque acredito na grandeza de Clarice. Mas liberdade de expressão não existe para proteger elogios. Disso, todo mundo gosta, A diferença entre o jornalismo e a propaganda é que o jornalismo é crítico. Não existe só para difundir as opiniões dos mais poderosos. E essa liberdade ou é absoluta, ou não existe.
Imagino, e compreendo, que você pense que está defendendo o direito dos artistas à vida privada. Mas quem vai julgar quem é artista, o que é vida privada e o que é vida pública, sobre quem, e sobre o que se pode escrever e sobre quem e, sobre quem não? Você escreve em jornal, você, como artista deve fazer, tem se metido no debate público. José Sarney, imortal da Academia Brasileira das Letras, escreve romances. Deve ser interditada também qualquer obra crítica sobre ele, sem autorização prévia?
Não pense, Caetano, que o seu passado de censurado e de exilado o proteja de você se converter em outra coisa. Lembre que o Sarney, quando foi eleito governador do Maranhão, chegou numa onda de aprovação da esquerda. Glauber Rocha, também amigo seu, foi lá filmar aquela nova aurora.
Não seja um velho coronel, Caetano. Volte para o lado do bem. Um abraçaço do seu amigo,
Benjamin Moser