Tereza Campello na Carta Capital: A real reforma do Estado

Gestora da política social que vem sendo copiada por vários países, a ministra comemora o sucesso.

Tereza Campello na Carta Capital: A real reforma do Estado

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Em entrevista à revista Carta Capital, a ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, comemorou os 9 anos do programa Bolsa Família. Os números revelam o sucesso da política social adotada em 2003 pelo ex-presidente Lula e ampliada por Dilma Rousseff. A frequência das crianças beneficiadas pelo Bolsa é de 95,5%. A taxa de aprovação supera a da média dos alunos da rede pública (80% a 75%). A evasão escolar é 50% menor. Segundo ela, o cadastro único, que reúne todos os programas sociais para a inclusão dos beneficiados. Com isso, o Governo elaborou o mapa da pobreza, que tem sido o responsável por uma verdadeira reforma do Estado brasileiro.

Leia a íntegra da entrevista à Carta Capital:

 

A real reforma do Estado

Após nove anos, completados no sábado 20, o Bolsa Família tornou-se um programa social aclamado no mundo. A quase totalidade dos preconceitos e mitos que alimentavam a oposição à sua existência foi desmentida pelos fatos. O programa não colocou sob o cabresto de Lula e do PT o voto dos eleitores mais pobres. Como é depositado direto em uma conta do cadastrado, ele eliminou a intermediação que sustentava os coronéis locais nos quatro cantos do País. Não fez vicejar uma geração de preguiçosos e vagabundos dispostos a trocar um emprego pelo benefício mensal que varia de 32 a 306 reais. Não transformou as mulheres em parideiras, prontas a colocar filhos no mundo em troca dos caraminguás ofertados pelo governo. A taxa de natalidade das beneficiárias está em queda, como acontece entre as demais mulheres. Muito menos desvinculou o benefício de metas escolares. Ao contrário. Os dados mostram que o controle tornou-se mais eficiente. A frequência das crianças beneficiadas pelo Bolsa é de 95,5%. A taxa de aprovação supera a da média dos alunos da rede pública (80% a 75%). A evasão escolar é 50% menor.

Integrante da equipe que montou o programa em 2003, a ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, fala a seguir do êxito do Bolsa Família e vai além. Segundo ela, o cadastro único originado pela inclusão dos beneficiados, que permitiu a elaboração do mapa da pobreza, tem sido responsável por uma verdadeira reforma do Estado brasileiro. “A partir das inúmeras informações que o cadastro único gera, estamos reorganizando a oferta de serviços públicos no País. Teremos um Estado mais efetivo, mais eficiente no atendimento às demandas, principalmente da população mais necessitada.”

CartaCapital: O Bolsa Família completa nove anos. O que fez dele um programa social tão bem-sucedido?

Tereza Campello: Até então, o Brasil nunca tinha tido um programa de transferência de renda com o objetivo de aliviar a pobreza e se constituir como parte da rede de proteção social não contributiva do Brasil. O que havia antes eram vários pequenos programas de transferência vinculados a objetivos específicos. Tinha, por exemplo, o Vale-Gás, de apenas 7 reais, concedido a uma pequena parcela dos brasileiros, para auxiliar na compra de gás de cozinha. Tinha o Bolsa Alimentação, de compra de leite, e o Bolsa Escola. No governo Lula, simplificamos as coisas. Em vez de vários programas fragmentados, o que dificultava inclusive o entendimento dos beneficiários, pois um vizinho recebia o Vale-Gás, o outro o Bolsa Alimentação e um terceiro o Bolsa Escola, unimos todos em um só. Adotamos o critério da impessoalidade. Os beneficiários recebem o dinheiro diretamente em uma conta, usam o cartão. Não há intermediários. E o alcance passou a ser muito maior. Quando se juntavam todos os programas anteriores ao governo Lula, a soma de beneficiados era de 4 milhões de famílias. Hoje chegamos a 13 milhões. Um em cada quatro brasileiros recebe o Bolsa Família.

CC: Os críticos dizem que o programa transfere renda sem cobrar, por exemplo, a frequência na escola.

TC: Não é verdade. Foi após a criação do Bolsa Família e o surgimento do cadastro único que o governo passou a ter de fato um controle das condicionalidades. Antes se sabia, no máximo, se a criança estava, por exemplo, matriculada na escola. Atualmente, controlamos a frequência escolar de 15 milhões de estudantes. Os alunos cujas famílias estão no programa têm frequência acima da média dos demais estudantes da rede pública de ensino. No caso de quem recebe o Bolsa, a frequência atinge 95,5%. Dos menos de 5% cuja frequência não é regular, perto de 30% têm motivos: geralmente, as crianças ficaram doentes por um período ou a família mudou de endereço e não conseguiu vaga na escola. No restante dos casos em que não há justificativa, trabalhamos para que as crianças voltem a frequentar a sala de aula. Perceba: os beneficiários do Bolsa Família vivem em famílias extremamente pobres, com indicadores infinitamente piores do que aqueles do restante da população. Outro dado: a evasão escolar entre quem recebe o benefício é 50% menor do que a média. Sabe por quê?

CC: Imagino.

TC: As mães não deixam as crianças faltar. Os jovens sentem o peso da perda do benefício, caso abandonem a escola e a família deixe de receber o Bolsa Família. Pensam duas vezes antes de largar os estudos. As crianças do programa também têm um índice de vacinação maior. Todos os indicadores mostram que o programa tem sido e continuará sendo ­fundamental para o rompimento do ciclo de pobreza entre gerações. Os filhos não estarão destinados a ser extremamente pobres só pelo fato de seus pais o serem. Teremos crianças mais educadas, mais bem alimentadas, mais amparadas.

CC: O governo esperava o efeito macroeconômico do Bolsa Família, um dos fatores responsáveis pela expansão recente da economia brasileira?

TC: Imaginávamos um efeito nas economias locais, um impacto microeconômico, digamos. Mas os efeitos gerais sobre a economia nacional, não. Esse efeito, aliás, ainda merece mais estudos acadêmicos. Sabemos que cada real repassado pelo Bolsa Família gera 1,44 real para a economia. Isso demole, portanto, a tese de que o programa é um desperdício de dinheiro, um gasto despropositado. O Bolsa possibilitou ao Brasil criar um colchão de renda permanente que nos impede de chegar ao fundo do poço em momentos de crise. São 50 milhões de brasileiros que continuam a comprar arroz, feijão, roupas…

CC: Havia quem não confiasse na capacidade dos beneficiários de gerir o próprio dinheiro, não?

TC: Sim, mesmo no governo. Mas prevaleceu a noção, inclusive determinada pelo presidente Lula, de permitir a completa autonomia das famílias. Para alguns, o dinheiro só poderia ser usado para comprar comida. Para outros, seria necessário criar um exército de servidores públicos para controlar o gasto dos pobres. É o velho preconceito. Caso eu receba um dinheiro a mais, vou gastar de forma irresponsável ou vou tentar poupar? Se qualquer um na classe média raciocina assim, por que seria diferente com os mais ­pobres?

CC: Sem falar na tese de que as mulheres teriam mais filhos para receber mais ­benefícios.

TC: Quanto alguém da classe média aceitaria receber para ter um filho a mais? Alguém imagina que 30 reais seria suficiente para as pessoas saírem por aí fazendo crianças? A decisão de transferir o dinheiro diretamente aos beneficiados, sem intermediário, foi fundamental. Assim como a parceria com os municípios. Sem os acordos com as prefeituras, o Bolsa Família não teria chegado aonde chegou, em todos os cantos do País. Outro ponto: prefeitos de todos os partidos se engajaram no projeto. Os convênios não foram firmados apenas com os representantes da base aliada.

CC: O programa atingiu seu limite ou ainda há muitas famílias a ser incluídas?

TC: No máximo, 500 mil famílias, o que dá cerca de 2 milhões de brasileiros.

CC: Outros países adotam programas de transferência de renda por tempo determinado. No Brasil, alguns especialistas cobram a criação de “portas de saída”. Por quantos anos mais o Bolsa Família será necessário?

TC: No momento, nosso esforço é para incluir famílias, não para excluí-las. O Brasil cresce menos neste momento, mas não está estagnado. Continua a gerar oportunidades para quem tem educação superior, para os de nível médio e para aqueles de baixa escolaridade. Continuamos a criar 1,5 milhão de empregos por ano. Em um país estagnado, como foi o nosso caso em passado recente, qual é a porta de saída para os mais pobres? Nações que adotam programas de tempo determinado optam pelo quê? As famílias terão chance de receber uma renda por um prazo. Se até lá não conseguirem se incluir, voltarão para a miséria. O Brasil acertou ao adotar um programa de tempo indeterminado. A população miserável do nosso país foi excluída durante séculos. Não teve chance de receber educação, de se alimentar. Uma criança desnutrida, com verminose, sem estímulos educacionais, tem sua vida adulta condenada, com baixa capacidade de desenvolvimento, mesmo se ela tentar estudar depois. Outra informação importante: metade dos beneficiários do Bolsa Família tem menos de 18 anos. Qual a “porta de saída” para esse público? Certamente, não está no mercado de trabalho. Está na sala de aula. De qualquer forma, fazemos um enorme esforço de qualificação profissional. Por meio do Brasil Sem Miséria, oferecemos cursos profissionalizantes do Pronatec. Temos quase 500 mil vagas para a população de baixa renda.

Bons alunos. A taxa de aprovação dos beneficiários é maior do que a mediana dos estudantes do ensino público. Foto: Celso Júnior/AE

CC: E arrumar um emprego não significa sair da miséria.

TC: Muita gente acredita que os mais pobres não trabalham. Este não é o problema. Em geral, eles conseguem vagas de trabalho precário. Ficam dois, três meses, e depois são dispensados. É comum na construção civil, por exemplo. A obra acaba e o sujeito fica sem emprego. Dos adultos do Bolsa Família, 72% trabalham. A “empregabilidade” é praticamente igual à da população em faixa de renda similar que está fora do programa. É outro mito derrubado. O Bolsa Família não desencadeou, como muitos acreditavam, o tal efeito preguiça.

CC: O Brasil tem dado muitas consultorias a delegações estrangeiras. O que mais os países querem aprender com a experiência do Bolsa Família?

TC: Muitas coisas. Mas eu diria que a nossa grande tecnologia é o cadastro único de beneficiados. Por meio dele foi possível traçar um mapa da pobreza no País. Tenho dito que o Bolsa Família, por meio do cadastro único, possibilita uma verdadeira reforma do Estado brasileiro.

CC: Como assim?

TC: Parte da esquerda rejeita qualquer discussão sobre a reforma do Estado, por associá-la a uma bandeira do neoliberalismo. Como se representasse a defesa de um Estado mínimo. Não é disso que falo. Defendo um Estado mais efetivo, mais eficiente no cumprimento da demanda da maioria da população. O cadastro único nos permite reorganizar a oferta de serviços públicos. Todo mundo quer mais creches, certo? Mas imagine se o governo federal se limitar a repassar os recursos. Em que lugares haverá ampliação das creches? Provavelmente, nas cidades mais ricas e nos bairros mais bem localizados. Dessa forma, não se consegue que os equipamentos públicos, uma unidade de saúde, uma escola, uma creche, sejam instalados nas localidades em que vivem os mais pobres.

CC: O Estado acaba por reforçar as desigualdades, certo?

TC: Sim. A ideia tem sido usar o cadastro único para reordenar essa oferta de serviços públicos, de várias formas. Dou um exemplo: cruzamos o cadastro do Bolsa com aquele das escolas e das matrículas no Brasil. Levantamos todas as unidades que têm mais de 50% dos estudantes entre os beneficiários do programa. Partimos do princípio de que uma escola com 50% de alunos no Bolsa Família fica em um bairro pobre e a outra metade dos alunos também é pobre. Ao todo, são 60 mil estabelecimentos no País. Separamos aquelas com condições de oferecer ensino em tempo integral. Para isso, a escola precisa de quadra de esportes, horários disponíveis, espaço etc… Metade tem condições. Com essa informação, procuramos cada um dos prefeitos. Perguntamos o motivo de a escola não promover mais educação e nos oferecemos para ajudar. O objetivo é induzir a ampliação da oferta de educação nos bairros mais pobres e, em geral, mais violentos. A experiência tem sido interessante. Hoje há oferta de cursos de fotografia, de judô, de caratê, de teatro, de música… A escola vira um espaço de participação e de vida comunitária para todos, principalmente para a juventude. O mesmo tem acontecido na saúde.

CC: De que maneira?

TC: A presidenta Dilma Rousseff definiu e conseguiu aprovar nas várias instâncias do Sistema Único de Saúde que as unidades de pronto-atendimento seriam construídas prioritariamente nas regiões localizadas no mapa da pobreza. As UPSs vão ser erguidas principalmente nos bairros mais pobres, onde se concentra a população de mais baixa renda. O mesmo se dará com os centros de referência de assistência social. O objetivo do SUS continua a ser a universalização da saúde e tem tudo a ver com esse propósito de levar os serviços justamente às populações mais carentes. Ninguém imaginava que o Bolsa Família iria se tornar a grande plataforma de hoje. À medida que as famílias entram no programa, seus dados ingressam no cadastro único. E o poder público acessa informações sobre esses brasileiros antes inimagináveis. Sabemos se a família é cigana, quilombola, de comunidade de terreiro, se é indígena. Há informações sobre o total de habitantes de uma determinada comunidade, o nível de escolaridade, aptidões, onde os beneficiários trabalharam. Isso já alterou a forma como o Estado brasileiro trabalhava e vai alterar ainda mais.

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