“A verdade é que, desde a Constituinte, nós não conseguimos ainda, na sua plenitude, ter uma consciência social do empregador no Brasil em relação aos direitos dos trabalhadores domésticos e trabalhadoras domésticas”. As palavras, ditas pela deputada Benedita da Silva (PT-RJ), resumem que não bastam apenas legislações como a Emenda das Domésticas (EC 72/2013), mas uma verdadeira valorização do trabalho desses profissionais.
O tema foi tratado em audiência pública, realizada nesta segunda-feira (17), pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado. Autora da EC 72 – que garante benefícios iguais aos recebidos por todos os demais trabalhadores com carteira assinada, a deputada afirma que é preciso criar uma cultura de que os direitos garantidos às domésticas são obrigatórios.
“Então, a consciência social que nós precisamos criar é exatamente esta. No momento em que não pudermos mais cumprir com os direitos da trabalhadora doméstica, a gente diz a ela: ‘Olha, tchau, não podemos, não vamos mais continuar’. Mas, enquanto estivermos precisando desses serviços, teremos que tratá-la com os mesmos direitos dos demais trabalhadores. Somos seres humanos e, além de seres humanos, nós temos o direito de um bem viver”, afirmou Benedita.
A emenda constitucional garante direitos como salário-maternidade, auxílio-doença, auxílio-acidente, pensão por morte e aposentadoria por invalidez, idade e tempo de contribuição. Também fixou a jornada dessas trabalhadoras em oito horas por dia e 44 semanais.
Sim, trabalhadoras, já que a grande maioria da massa trabalhadora é formada por mulheres. E negras. E que só tiveram seus direitos efetivados em 2015 por meio da Lei Complementar 150, garantindo seguro-desemprego, salário-família e adicional noturno e de viagens, além das horas extras. O valor do salário aumentou em pelo menos em 50%.
Benedita lembrou a dificuldade que foi garantir a aprovação de direitos para essas profissionais, muitas vezes tratadas de maneira análoga à escravidão (muitas já moraram de favor na casa dos patrões, sem direito a salário). Ela agradeceu o empenho da então presidenta Dilma pela regulamentação da profissão – sem esquecer, claro, da luta que permanece.
“Sabemos que, nesses dez anos, nós continuamos nesta luta na Câmara, porque nós acreditamos que a gente crie também uma consciência. Não dá para gente criar só lei. Não existe ainda totalmente uma consciência no imaginário do empregador doméstico. Porque essa questão de casa-grande e senzala é uma coisa muito forte e ela não pode se perpetuar. Nós mulheres temos os mesmos direitos em qualquer lugar que nós estivermos trabalhando”, apontou a deputada.
Em linha com o pensamento de Benedita, o presidente da CDH, Paulo Paim (PT-RS), afirmou que a vida desses profissionais nunca foi fácil no Brasil. “Vem de longe, vem de outros tempos, da época da escravidão, da casa grande. Mas a luta por direitos e respeito sempre esteve viva no dia a dia, da resistência coletiva”, disse.
Abusos
Uma das falas mais fortes da audiência de hoje foi da representante da Articulação das Empregadas Rurais de Minas Gerais, Gislene Alexandre. Segundo ela, nas cidades pequenas, a realidade das empregadas é cheia de preconceitos e abusos.
Um desses abusos se mostra na “classificação” dos empregos pelos trabalhadores. Segundo ela, muitas empregadas consideram um local de trabalho como “bom” apenas pelo fato de as trabalhadores poderem consumir a comida na casa dos patrões.
“Isso está no imaginário, porque no nosso Brasil as pessoas ainda têm um gosto pela escravidão, gosta daquela cafonice de ter uma mulher do lado dela tendo de servir em pé enquanto ela está comendo, não pode pegar a comida que já foi feita pela outra e botar no prato”, criticou Gislene.
“Um auge querer ser sinhá ainda neste Brasil que, quando as pessoas falam assim: ‘Você escreve sobre mulheres? Você é feminista?’, eu falo: ‘Sou feminista, classista e rural’, porque eu sofri muito mais exploração na minha vida de mulher branca e rica do que de homem preto pobre”, finalizou.
Total de domésticas diminuiu
Nos últimos dez anos, o total de empregadas domésticas diminuiu no Brasil, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O número de diaristas, no entanto, que não recebem direitos trabalhistas, aumentou exponencialmente: três em cada quatro trabalham sem carteira assinada.
Os números recentes mostram uma dura realidade. Enquanto em 2013 havia 1,9 milhão dessas profissionais com carteira assinada, em 2022 – último ano da gestão Jair Bolsonaro, fechou com 1,5 milhão de pessoas registradas.
Para Mário Avelino, presidente do Instituto Doméstica Legal, a culpa por essa mudança não foi nem da EC 72 e nem da lei que regulamentou a profissão. “A lei foi boa para o empregado, porque deu os direitos, e também para o empregador, porque deu a segurança jurídica. A informalidade aumentou de forma proporcional e o grande vilão foi a crise econômica”, destacou.
Fiscalização
O trabalho doméstico no Brasil, assim como mostram os dados estatísticos, é caracterizado pela informalidade também nas fiscalizações. De acordo com a auditora fiscal do Trabalho Marina Cunha Sampaio, outras características da profissão incluem ainda baixa remuneração, vulnerabilidade e assédio. Daí a importância de mudar a postura dos empregadores e conscientizar os trabalhadores de seus direitos.
Sampaio também anunciou o lançamento de uma operação nacional de fiscalização em abril, envolvendo auditores fiscais de todas as regiões, que visa a promoção de um trabalho doméstico digno e com garantia mínima de direitos sociais.
Um dos grandes problemas tem sido o desaparelhamento do Estado. Segundo a representante do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, Teresinha de Lisieux Rodrigues, é preciso de imediata realização de concurso público para recompor o quadro de pessoal. Para ela, a fiscalização sistemática é essencial para combater o trabalho doméstico irregular, mas tem sido ineficaz no Brasil devido ao pequeno contingente e às dificuldades operacionais.
Rodrigues observou que o número de auditores fiscais diminuiu significativamente desde 1996, quando havia 3,2 mil profissionais, em comparação com menos de 2 mil atualmente.
Ela questionou como é possível combater a exploração sem uma estrutura adequada e apontou o esforço pessoal dos fiscais diante da recepção hostil e do medo. “A situação é tão precária que não há coletes à prova de balas e apenas dois carros para uso”, lamentou.