Caiado nega reconhecimento às populações tradicionais no novo Marco da Biodiversidade

Mesmo com a resistência da bancada do PT, 38 senadores aprovaram a retirada do projeto de garantias que atingem 4,5 milhões de brasileirosO Senado Federal discute um novo Marco da Biodiversidade (PLC 2/2015) com avanços muito aquém do que poderia ter sido construído. Na noite desta terça-feira (14), com exceção das bancadas do PT, PSB, PC do B e PSol, 38 senadores atenderam às pretensões do ruralista Ronaldo Caiado (DEM-GO) e retiraram do projeto garantias de direitos das comunidades tradicionais do Brasil, que haviam sido aprovadas na semana passada.

A reviravolta atinge cerca 4,5 milhões dos brasileiros que fazem parte dessas comunidades – representadas por caboclos, caiçaras, extrativistas, indígenas, pescadores, quilombolas e ribeirinhos. Deles foi retirado o reconhecimento de identidade própria, com uma história e noções culturais diferentes, que havia sido incorporado pelo senador Jorge Viana (PT-AC), no parecer apresentado na Comissão de Meio Ambiente (CMA).

Mesmo preservados todos os pontos vinculados ao agronegócio, Caiado patrocinou uma confusão sobre os conceitos de “povos”, “comunidades” e “populações”, levando a maioria dos senadores a resgatar o texto da Câmara dos Deputados. O principal argumento do ruralista era de que a opção de Viana por adotar as expressões “povos indígenas” e “comunidades tradicionais” ameaçava a soberania nacional.

O senador Telmário Mota (PDT-RR) rebateu e negou a possibilidade da construção de um imperialismo indígena. “O Brasil não vai perder a cidadania porque reconhece os povos pioneiros deste País. Que força teriam só 900 mil índios, munidos de arco e flecha, para tornarem-se uma nação? Que bobagem”, ponderou.

Outra falácia sustentada por Caiado foi a de que a adoção de “povo” fere a Constituição Federal. Mas ao contrário do que diz o senador, na Carta Magna não há definição de povo, sua referência aparece tão somente no preâmbulo da legislação; portanto não é norma jurídica, segundo constitucionalistas.

O senador Lindbergh Farias (PT-RJ), elucidou que, na realidade, o termo “povos indígenas” é mais adequado. Ele lembrou que o Brasil é signatário da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que orienta a sua adoção, como forma de diferenciar as comunidades por suas especificidades.

“Os povos interessados terão o direito de definir suas próprias prioridades no processo de desenvolvimento na medida em que afete sua vida, crenças, instituições, bem-estar espiritual e as terras que ocupam ou usam”, destacou Lindbergh, citando trecho do artigo 7º da Convenção. “Não estamos construindo um conceito de nação”, reforçou o petista.

Ganho comercial sobre os saberes tradicionais

Ronaldo Caiado também ensaiou dificultar o ganho financeiro das comunidades tradicionais, a partir seus conhecimentos da natureza. Passado de geração em geração ao longo dos séculos, esse saber tem alto potencial econômico e, historicamente, é explorado inadequadamente. Essa distorção foi corrigida por Jorge Viana, quando estabeleceu, no projeto, a obrigatoriedade de repartir até 1% do lucro dos produtos resultantes do uso de um conhecimento tradicional, mesmo que este não esteja entre os principais elementos de agregação de valor.

Entretanto, o ruralista tentou diminuir a possibilidade de repartição dos benefícios financeiros apenas para quando o conhecimento tradicional fosse o elemento principal de composição de um produto. Posição contestada pelo senador Donizeti Nogueira (PT-TO): “todos os produtos que compõem uma fórmula agregam valor a ela. Não podemos alijar os recursos da biodiversidade e os conhecimentos das populações tradicionais que contribuem para valorizar os produtos”.

Os senador Telmário e Randolfe Rodrigues (PSol-AP) foram ainda mais enfáticos e levantaram que a iniciativa de Caiado, na prática, oficializava a “biopirataria nacional e estrangeira”. Tais declarações foram capazes de promover uma mudança de opinião em parte dos senadores presentes no plenário, o que resultou por 32 votos a 31– com uma abstenção – na manutenção da proposta feita por Viana.

A discussão continua

Temendo nova derrota sobre o marco temporal usado na cobrança de repartição dos benefícios financeiros, Caiado reivindicou que a discussão e votação do novo Marco da Biodiversidade fossem concluídas nessa quarta-feira (15). O senador Lindbergh protestou, mas o presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), assentiu aos apelos do ruralista.

Finalizada a votação no Senado, o projeto retorna a Câmara dos Deputados para nova análise. Os deputados têm até o próximo dia 20 de abril para concluir o reexame e enviar a matéria para a sanção presidencial, por razão do regime de urgência constitucional em que tramita o texto.

O Marco

O Marco da Biodiversidade nasceu da preocupação de impulsionar o aproveitamento da biodiversidade brasileira, na geração de conhecimento, emprego e riqueza. O governo federal detectou que a legislação em vigor (Medida Provisória 2.186-16/2001), criada para conter a biopirataria, acabou por desestimular o desenvolvimento de pesquisas científicas e tecnológicas acerca do patrimônio natural e das comunidades tradicionais brasileiras, em função da burocracia e do excesso de restrições.

Em números, isso quer dizer que o País G1 em biodiversidade – com 20% da biodiversidade do planeta – e detentor da 13º colocação no ranking de publicações científicas do planeta não produz nem 5% do conhecimento científico e do reconhecimento acadêmico dessa riqueza nacional. O que reflete diretamente na nossa economia, cuja base são commodities que sequer fazem parte do nosso recurso natural.

“A cana-de-açúcar, que é tão importante na economia brasileira, é proveniente de Nova Guiné; o café, da Etiópia; o arroz, das Filipinas; a soja e a laranja, da China; o cacau, do México. O trigo é asiático, a silvicultura tem como base o eucalipto australiano. Os bovinos são da Índia; os equinos, da Ásia. Os capins são africanos”, ponderou Jorge Viana, ao defender o projeto na semana passada. “Essa é a base da economia do agronegócio brasileiro. Toda ela, inclusive o capim, está baseada no uso de espécies exóticas ao nosso País”, completou.

O senador petista também chegou a ressaltar que a discussão sobre o novo Marco da Biodiversidade do Brasil está sendo acompanhada pelo mundo inteiro, que utiliza as leis ambientais brasileiras como “faróis”. Viana ainda avaliou que o projeto “vai mudar o Brasil”. “Essa matéria vai mudar a relação do Brasil com suas riquezas, vai estabelecer as bases de uma nova economia para o nosso País, vai fazer com que haja justiça social e respeito ao nosso patrimônio natural”, sustentou.

Catharine Rocha

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