A notícia sobre o resgate de 17 pessoas em condições análogas à escravidão, divulgada nesta semana, retomou um debate deixado de lado nos últimos anos no país. E as medidas para reverter o período de descaso já começaram a ser tomadas.
No final de janeiro, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, afirmou que pretende revogar o Decreto 9.887/2019. O ato da gestão Bolsonaro reduziu de 18 para apenas 8 o número de integrantes da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e a participação da sociedade civil.
Este é o primeiro passo do governo para retomar o protagonismo do Brasil na pauta, já que outros decretos também serão reavaliados e ações de erradicação, retomadas. Durante as gestões Lula e Dilma, mais de 40 mil trabalhadores e trabalhadoras foram resgatados de situações análogas à escravidão.
O objetivo é claro: erradicar do país casos como o ocorrido em uma carvoaria no Maranhão, quando uma mulher e 16 homens foram resgatados em condições subumanas. A fazenda na qual eles trabalhavam fica na zona rural de São João do Paraíso, a 761 quilômetros de São Luís.
A fiscalização constatou um estado precário de conforto e higiene nos alojamentos. Os trabalhadores e a trabalhadora bebiam água sem processo de filtragem e preferiam tomar banho em um riacho a utilizar o banheiro. Eles também vivam há três meses sem energia elétrica e cozinhavam em um fogareiro improvisado com lata de alumínio.
Segundo o Ministério Público do Trabalho, todos receberam o pagamento integral das verbas rescisórias a que tinham direito.
Expropriação de terras
Durante o governo Dilma, em junho de 2014, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional (EC) 81, que prevê o confisco de propriedades rurais e urbanas que possuem trabalhadores submetidos à escravidão. As propriedades devem destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular.
O tema é tratado atualmente no Congresso Nacional por meio do Projeto de Lei (PL) 5970/2019, que regulamenta a EC 81 e não prevê qualquer ressarcimento aos antigos donos das terras.
O relator do projeto e líder do PT no Senado, Fabiano Contarato (ES), apresentou parecer favorável à matéria, que aguarda deliberação na Comissão de Direitos Humanos. Para ele, impor o risco de perda da propriedade implica estabelecer um contraponto a um dos pilares da prática abominável: “a ganância de certos empregadores”.
“Contrabalançado pela hipótese do prejuízo que pode vir a ser causado pela expropriação de um bem valioso, o desmesurado afã pelo lucro que rege práticas como a do aliciamento ilegal, muitas vezes adornado por falsas e atraentes promessas de bons salários, tende a perder força”, diz o parlamentar no relatório.
Liberdade abandonada
O ex-líder do PT no Senado, Paulo Rocha (PA), é o autor da proposta que deu origem à EC 81. É dele também a Lei 9.777/1998, que criminaliza o trabalho escravo no Brasil. O petista acredita que a gestão Lula deve colocar a questão novamente como uma prioridade.
“Lula vai retomar o combate à escravidão como uma das principais pautas do governo. O Brasil passou por duas gestões [Temer e Bolsonaro] que deixaram de lado um dos temas mais caros em uma democracia: a liberdade dos seres humanos. A defesa dos direitos fundamentais do cidadão está de volta”, destacou Paulo Rocha.
Na gestão Temer, o Ministério do Trabalho publicou portaria reduzindo as situações que poderiam ser classificadas como trabalho análogo à escravidão. Além disso, ainda colocava em risco a concessão de seguro-desemprego aos trabalhadores resgatados, que vinha senda paga desde 2003.
O que já era ruim piorou com Bolsonaro. Ele chegou a prometeu alterar leis que regulam as regras que tratam do trabalho análogo à escravidão no Brasil. Garantiu, inclusive, que a EC 81 não seria regulamentada durante o seu governo. Até mesmo as operações de combate à prática caíram em 57% já nos primeiros cinco meses de Jair à frente da Presidência da República.
Erradicação como prioridade
Logo em março de 2003, Lula, em seu primeiro mandato, anunciou o lançamento da primeira fase do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, hoje reconhecido mundialmente. O texto continha 75 ações para a eliminação da prática no país, por meio de um trabalho articulado dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, Ministério Público, organismos internacionais e sociedade civil.
Foi também nos governos do PT que foi criada a chamada “Lista Suja”, que relaciona os nomes de empregadores condenados no nível administrativo pelo uso de mão de obra escrava, restringindo acesso ao crédito junto a bancos oficiais.
O momento é de retomar a pauta. E de forma urgente, visto a gravidade do retrocesso dos últimos anos. Como já disse certa vez o senador Paulo Paim (PT-RS), “o Brasil não pode fechar os olhos para os resquícios da escravidão que ainda persistem em nossa sociedade”.